06 setembro 2018

Como o Brasil desbancou a Argentina na criação de startups

Foi no país vizinho que nasceram nomes de peso como Mercado Livre, mas hoje as referências estão no Brasil

A empresa de internet mais bem sucedida da América Latina é a argentina Mercado Livre, criada em 1999 e avaliada hoje em cerca de US$ 15 bilhões - o oitavo maior site de comércio eletrônico do mundo. Nesses quase 20 anos, surgiram companhias do setor em toda a região, mas foi também na Argentina que apareceram outros destaques do mercado de internet, como o site de turismo Decolar, o serviço online de venda de itens usados OLX e o portal financeiro Patagon, vendido por US$ 585 milhões para o banco Santander em 2000.

Enquanto as ideias dessas grandes empresas surgiam nas mesas dos bares portenhos, os negócios brasileiros partiam principalmente do setor corporativo. O Portal UOL, iniciativa do Grupo Folha com a Editora Abril e o fundo GP Investimentos, por exemplo, teve papel determinante na idealização do Submarino.com. Assim, apareciam por aqui mais executivos do que necessariamente empreendedores. E como as empresas argentinas acabaram crescendo mais que as nacionais, Buenos Aires se consolidou como o lugar de onde saíam as ideias de negócios para internet com resultados mais positivos.

Mas o jogo mudou. "O cenário hoje é muito diferente", diz Hernan Kazah, um dos fundadores do Mercado Livre e atualmente líder do fundo Kaszek Ventures. "Quando começamos a empresa há 20 anos o ecossistema de tecnologia mais vibrante da América Latina ficava em Buenos Aires; hoje está em São Paulo."

Entre 2013 e 2017, o Brasil recebeu 52% do valor investido por fundos de capital de risco estrangeiros em startups da região, segundo a Associação Latino Americana de Private Equity e Venture Capital (Lavca). O maior sinal da virada contra os hermanos foi a venda do aplicativo de transportes 99 para a chinesa Didi, que teve o valor de mercado avaliado em US$ 1 bilhão - a primeira desse porte na região. Criada pelos brasileiros Paulo Veras, Renato Freitas e Ariel Lambrecht em 2012, foi também a primeira empresa fundada nessa década a completar o ciclo típico de uma startup de sucesso: concepção, validação do modelo de negócio e "saída", termo que representa venda ou abertura de capital - o que significa o retorno do dinheiro investido.

A inversão do jogo não se deve a um ou outro motivo isolado. Primeiro, a Argentina mergulhou em uma crise econômica e política que já se estende por 16 anos. Em 2001, o país anunciou um calote em sua dívida pública. Depois, o país se fechou e adotou medidas para restringir a saída de dólares, o que afugentou ainda mais os investidores e inibiu a geração de negócios. "Isso afetou o país todo, inclusive as startups", afirma Oliver Cunningham, sócio da consultoria KPMG.

Na segunda metade da década de 2000, os Estados Unidos e a Europa também viviam uma crise financeira, enquanto o efeito BRICs atraía cada vez mais atenção ao Brasil, o que fez o PIB nacional subir 7,5% em 2010. Para completar, a venda do site de comparação de preços Buscapé para o fundo sul-africano Naspers por US$ 342 milhões, em 2009, mostrou para quem ainda duvidava que era possível construir aqui uma empresa de internet com baixíssimo investimento e vendê-la por centenas de milhões de dólares depois de 10 anos.

Um dos marcos mais importantes da virada, porém, foi a repatriação do brasileiro Júlio Vasconcelos, que havia passado cinco anos morando no Vale do Silício, na Califórnia (EUA) e voltou ao Brasil em 2010 para abrir o site de compras coletivas Peixe Urbano. "Para mim, ter empresas grandes bem sucedidas aqui não era uma questão de 'se', mas de 'quando'", afirma. Sua empresa chegou a faturar R$ 350 milhões e esteve em mais de 100 cidades na América Latina.

A benfeitoria do Peixe Urbano ao ecossistema brasileiro se estendeu em três frentes. A primeira foi fazer com que o fundo de capital de risco Benchmark, que havia investido no início do Facebook, realizasse seu primeiro aporte no país, chamando a atenção localmente para o setor e atraindo outros investidores americanos.

O segundo foi encorajar empreendedores de internet pelo Brasil, já que surgiram mais de mil sites de compras coletivas em nosso território. Finalmente, quem trabalhou no alto escalão do Peixe Urbano acabou virando motor do desenvolvimento de novas empresas. O atual presidente do aplicativo de transportes Uber, Guilherme Telles, por exemplo, foi funcionário do Peixe.

Leitura. Os fatores culturais e geográficos também ajudam a explicar por que a Argentina largou na frente no mercado de internet. Dados da NOP World Reports Worldwide mostram que a Argentina está nove posições à frente do Brasil no ranking dos países que mais leem. Além disso, por ser um país com dimensão territorial menor, é natural que comecem suas empresas com mais ambição, já pensando em internacionalização.

Não menos importante para que o Brasil assumisse o protagonismo em internet na região foi a criação do fundo Monashees, em 2005. Na época não havia nenhuma grande iniciativa que justificasse a criação de um fundo de capital de risco especializado em internet. Ex-funcionário do fundo americano General Atlantic e apaixonado por startups, Eric Acher decidiu abrir o fundo com o sócio Fábio Igel e, aos poucos, dava dicas aos empreendedores locais.

Em algumas empresas em que a Monashees fez aporte, ajudou a fundar as startups com envolvimento um pouco mais profundo do que normalmente acontece com fundos semelhantes nos Estados Unidos. O resultado dessa atuação foi que quando as atenções se voltaram ao Brasil, a Monashees era o primeiro contato de quem queria entender o que estava acontecendo localmente. Muitos negócios que fizeram as primeiras rodadas de aporte com Acher e Igel depois se associaram a outros fundos de maior porte, como a Accel Ventures, investidora do Facebook, a Tiger Global Management ou o fundo de private equity Riverwood Capital.

Em meio a uma severa crise econômica, que levou o presidente Mauricio Macri a anunciar um pacote de medidas nesta semana, a Argentina tenta se manter no jogo. O país vizinho anunciou recentemente um conjunto de leis para impulsionar principalmente startups, permitindo que empreendedores criem uma empresa em menos de 24 horas. Estadao Leia mais em terra 04/09/2018


06 setembro 2018



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