Com faturamento de R$ 5,1 bilhões, o grupo distribui para 115 mil varejistas e sabe em tempo real o que acontece com os pequenos comerciantes no Brasil. Em entrevista ao NeoFeed, o CEO Flávio Martins conta como está lidando com esta crise
Em tempos de pandemia, onde a volatilidade é a única certeza para empresários e executivos, Flávio Martins ocupa uma posição singular. Assim como seus pares, o mineiro de 51 anos ainda não consegue vislumbrar uma saída para a crise. Mas ele tem à mão, diariamente, um verdadeiro mapa com os estragos já gerados pelo surto no Brasil. E em um setor vital para a economia do País.
CEO do grupo Martins, de distribuição e atacado, o executivo comanda uma operação que fatura R$ 5,1 bilhões e alcança, indiretamente, boa parte dos brasileiros. Todos os dias, a frota de 1,2 mil caminhões da companhia percorre todo o País para entregar mercadorias a uma base ativa de 115 mil varejistas, em sua maioria, comércios de pequeno e médio portes.
Com 4 mil funcionários e um batalhão de 4 mil vendedores autônomos, a empresa tem um catálogo de fornecedores, que oferecem cerca de 25 mil produtos. De alimentos e eletrônicos a materiais de construção, itens de higiene e peças automotivas.
Nas últimas semanas, com a propagação do coronavírus, Martins vem lidando com o dilema de manter uma operação que tem um peso fundamental para o abastecimento do País. Ao mesmo tempo em que testemunha os efeitos devastadores da pandemia no setor.
“No nosso caso, no pior dos mundos, estamos falando de uma perda de 60% de faturamento”, afirma o executivo, que, apesar do sobrenome, não é parte da família responsável pela fundação do grupo. “Mas tenho certeza absoluta que passaremos por essa crise.”
Martins não enxerga, porém, a mesma perspectiva otimista para muitos dos varejistas, especialmente os pequenos e médios empresários. E aponta os decretos que instauraram a quarentena em boa parte do País como a razão para essa projeção pouco animadora. “Eu não conheço um cliente nosso que sobreviva dois meses fechado.”
Em entrevista ao NeoFeed, o executivo falou sobre esse e outros temas relacionados à crise. Confira:
Como você enxerga o momento que estamos vivendo?
Eu tenho 51 anos, 35 deles no mercado. Já passei por muitas crises. Conversão de moeda, inflação, deflação, planos econômicos malucos, crise de 2008, greve dos caminhoneiros. Mas essa é completamente distinta de tudo o que já vivemos. O conhecimento e as respostas que nós acumulamos não servem para todas as perguntas que temos hoje. É uma situação global, fruto de um agente biológico e que causa mortes. E há uma superexposição midiática, muito agravada pelas redes sociais, que trazem informação de pouca qualidade. Tem uma zona de controle e uma zona de influência. Nós estamos focando na nossa zona de controle.
Quando a empresa começou a se preparar para esse cenário?
Começamos a monitorar há três semanas. Mas viramos a chave, de fato, há duas semanas, quando criamos um comitê de crise. Fazemos reuniões todos os dias, às 7h30 e às 17h. É um contexto de volatilidade absurda. Ajustamos, ajustamos e assim vamos. Nós atendemos 115 mil varejistas por mês. Desses, mais de 80 mil são de alimentos, pequenos supermercados, muitas vezes, o único naquela cidade. Eu não posso deixar de atender esse cliente.
Mas o grupo tem fôlego para atravessar essa crise?
Uma das primeiras coisas que fizemos foi um teste de estresse da área financeira. E posso dizer que, mesmo com o pior cenário, nós passaremos por isso. No pior dos mundos, estamos falando de uma perda de 60% do faturamento, provavelmente até agosto. Vamos ter que ajustar aqui e ali, mas a empresa sobrevive.
Esses ajustes podem passar por demissões?
Nesse momento, isso não está no escopo. Agora, se esse cenário perdurar por muito tempo, eu não tenho como manter a estrutura que eu tenho hoje. Mas essa é uma ferramenta possível apenas num cenário catastrófico.
“O conhecimento e as respostas que nós acumulamos não servem para todas as perguntas que temos hoje”
Quais foram as medidas adotadas para preservar os funcionários e, ao mesmo tempo, a operação?
Desde a segunda-feira 16, todos aqueles que fazem parte do grupo de risco estão trabalhando de casa. No escritório, adotamos todas as normas de distância social e de higienização. No decorrer dessa semana, colocamos mais gente em home office, inclusive 100% do meu call center, que tem 450 pessoas. Hoje, o escritório está operando com cerca de 40% das pessoas. Eu e a diretoria seguimos trabalhando presencialmente. O capitão é o último que sai do navio.
E quanto aos vendedores autônomos em campo?
Temos 4 mil vendedores hoje em todo o Brasil. Todos eles têm tablet, celular e conseguem fazer tudo de casa. Nós já vínhamos incentivando isso há algum tempo, antes da crise. Com base no histórico e no relacionamento, ele envia um pré-pedido para o cliente, que consegue comprar tudo pelo nosso marketplace. E a comissão vai para esse vendedor. É especialmente importante agora. Não tem impacto na remuneração dele. Está funcionando muito bem. Neste mês, estamos com um crescimento de 32% nesse canal.
E na área da logística e das entregas, vocês já sentiram algum impacto?
Até agora, não. O que nós fizemos foi aumentar nossa gestão de risco. Estamos carregando os caminhões com menos valor por carga, porque temos informação que pode haver mais assaltos nesse momento. E, dependendo da carga, estamos colocando até escolta.
Municípios como Tabira (PE) seguem no roteiro do grupo, mesmo com o avanço do Covid-19
E os efeitos dessa situação na demanda?
No todo, nas duas últimas semanas, nosso volume cresceu 6%. Especialmente por conta da categoria farma/alimentar, que avançou 9%. Já em eletrônicos e materiais de construção, o recuo foi de 15%. A seguir do jeito que está, nossa projeção é de uma queda geral de, no mínimo, 30% em abril. Houve um pico irreal, com uma corrida, a meu ver, desnecessária às compras. Uma antecipação do consumo. Mas agora, o que a gente espera é um vale profundo na demanda.
A retomada será lenta?
Tenho certeza que a demanda não será no mesmo nível de antes da crise. O consumidor perdeu a confiança, não sabe se vai ter emprego. Então, essa demanda vai mudar para gêneros básicos, alimentação, higiene, limpeza. Agora, as pessoas, talvez até inconscientemente, foram chamadas a uma reflexão. Vai ter sim, um perfil diferente. Qual vai ser, não sei dizer. Mas vai ser menor. E beleza, material de construção, eletrônicos são categorias que vão sofrer um pouco mais.
E na ponta dos varejistas, como vocês estão trabalhando?
A primeira coisa é proteger esse cliente dele mesmo. Pra não deixar ele quebrar. Ele vê essa demanda de agora e quer estocar também para garantir o atendimento. Mas não estamos deixando comprar e explicamos. Ele não vai gastar o capital de giro estocando porque eu vou assegurar o abastecimento, dentro do que ele precisar.
E o que mais o grupo tem feito para apoiar esses clientes?
Via Tribanco, que é o nosso braço financeiro, estamos fazendo integração com recebíveis que eu consigo financiar, alongar os prazos e dar mais crédito pra ele. Já está acontecendo. Aqueles clientes que têm recebíveis no nosso banco, tem um crédito maior, muito mais alongado. Já fazíamos isso, agora mais ainda.
Vocês atendem varejistas de todos os portes, em todo o País. Qual é a perspectiva diante do fechamento das lojas?
Eu não conheço um cliente nosso que sobreviva dois meses fechado. O fluxo de caixa do pequeno e médio varejo brasileiro é de 27 dias. Estou falando da vendinha no interior do Brasil. Não estou falando de Carrefour, do Pão de Açúcar. Esses têm onde recorrer. Agora, o pequenininho, o fluxo de caixa dele é aquela pasta sanfonada, com os boletos de cada dia do mês. Ele depende da venda pra pagar funcionário. O tempo não parou. O imposto está lá, a folha de pagamento, a prestação do banco, o fornecedor. Tudo isso vai continuar vencendo. E existe todo um impacto na cadeia. A cada emprego no varejo, tem 25 para trás, e no mínimo, 5 para frente. Isso está travado. Essa é a grande preocupação.
E o que os seus clientes têm dito a respeito dessa situação?
Existe uma incerteza e, acima de tudo, insegurança quanto a própria existência. O que me leva a acreditar que, até posso ser mal interpretado por isso, teremos mais falidos do que falecidos. Vamos imaginar que essa situação perdure por muito tempo. Vamos ter uma horda de desempregados. O risco, no limite do limite, é de uma convulsão social. É gravíssimo. O desemprego vai gerar muito mais problema na saúde do que o problema em si.
O que deveria ser feito, então?
Acho que o isolamento horizontal é válido, foi acertado, mas já estamos nele, de fato, desde a semana passada. É preciso proteger as pessoas de risco, evitar aglomerações e migrar gradativamente para o isolamento vertical. Deixar a economia girar. Não estou falando das grandes empresas, mas do peão de obra, do manobrista, do cara que ganha diária. Esse cara não tem caixa. Então, tem que começar a voltar. A diferença entre o remédio e o veneno é a dose. Tem que saber dosar.
E como você enxerga a atuação do governo nesse contexto?
Tem muito a melhorar, principalmente, em termos de conexão. De deixar os interesses eleitoreiros, partidários e ideológicos de lado nesse momento. O inimigo não é o outro, não é a outra ideologia, a outra eleição. Temos um risco biológico de fato. Acho que precisava haver uma comunicação maior, deixar os interesses pessoais e olhar o bem maior da nação. Está faltando isso.
Como você avaliou o pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro na noite da última terça-feira 24?
Eu tenho minha opinião, que não necessariamente reflete a opinião da empresa. Então, eu não gostaria de tocar nesse assunto. Qualquer coisa que falar, a gente perde.
E quanto à equipe econômica, o que poderia ser feito para reduzir os impactos imediatos da crise e dar maior segurança no médio prazo?
Mesmo à custa de alguma inflação, o governo deveria adotar medidas para incentivar o consumo. Porque ele gera emprego, renda, produção, demanda. E como eu incentivo consumo? Preservando e gerando emprego. Dando acesso a crédito mais barato e fazendo a roda girar. O mais urgente é desonerar a folha de pagamento e postergar impostos. O governo vai ter que abrir mão, ou pelo menos postergar por um bom tempo, parte da arrecadação. Podemos aproveitar esse momento para uma revisão, de fato, de tributos. E para sairmos melhores da crise. Como pessoas e com uma economia mais forte. É possível. Mas depende das ações que tomarmos hoje.
Siga o NeoFeed nas redes sociais. Moacir Drska .. Leia mais em neofedd 27/03/2020
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