11 janeiro 2020

Ronaldo Lemos revela a estratégia chinesa para ganhar o mundo

Só em 2019, o advogado especialista em tecnologia foi oito vezes à China

‘É INACREDITÁVEL’  Para Ronaldo, os chineses estão construindo novos modelos de negócios, que começam a ser copiados no Ocidente

Planeje com ambição, execute com rigor, corrija o necessário. Os chineses aplicam essa estratégia com sucesso há décadas. Ronaldo Lemos, 43 anos, advogado especialista em tecnologia, vem tentando entender como eles conseguem. Só em 2019,  foi oito vezes à China. Percorreu o país para o documentário Expresso Futuro e para as missões do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade) com investidores e empresários. Encontrou hubs de inovação mesmo em cidades pouco conhecidas, como Qindao. Ao passar por São Paulo, conversou com Época NEGÓCIOS.

“Estamos acostumados a ver a China mediados pela imprensa americana. Eu mergulhei no processo de conhecer o país e foi fascinante — é o buraco em que a Alice entra [Alice, personagem do escritor inglês Lewis Carroll (1832-1898), que, ao seguir o Coelho, cai no buraco que a leva para o delirante país das maravilhas]. O que está acontecendo do ponto de vista de tecnologia é muito impressionante. Eles estão colhendo o sucesso de um grande esforço de planejamento. Em 40 anos, o país saiu de uma economia rural, em que as pessoas passavam fome, e conseguiu dar um salto para, primeiro, virar uma economia industrial, e agora, uma economia de inovação. Muitas coisas que eu vi na China hoje são mais inovadoras do que eu estava acostumado a ver no Vale do Silício. Fiquei surpreso porque eles [os chineses] estão realmente conseguindo criar modelos novos. Por exemplo, empresas como PinDuoDuo na área de e-commerce, ou TikTok e Kwai na área de mídia, começam a ser copiadas no Ocidente. É inacreditável!

A China é um chamado para o Brasil. Somos excelentes consumidores de tecnologia, mas péssimos produtores não só de tecnologia como de inovação. Se os chineses conseguiram fazer o que fizeram, por que um país como o Brasil, que tem, além de um mercado consumidor grande, base instalada para dar esse salto, não poderia fazer o mesmo? O ponto de partida da China foi muito inferior ao do Brasil atualmente.

O que me chamou de imediato a atenção foi a infraestrutura. Fiz boa parte da viagem em trem-bala. E isso é muito radical. Nos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008, a China tinha 130 quilômetros de trem-bala. Dez anos depois, tem 29 mil quilômetros. Eles construíram ferrovias conectando o país inteiro. É muito chocante para os brasileiros, especialmente para quem usa a ponte aérea com frequência. Fiz os 1,4 mil quilômetros entre Xangai e Pequim em quatro horas e meia. Xangai tem hoje uma população pendular de 70 milhões de pessoas. A pessoa acorda de manhã, pega o trem-bala e uma hora depois está em Xangai. Depois do trabalho, pega o trem de volta e dorme a 300 quilômetros dali. E a gente, aqui, incapaz de construir um trem entre Rio de Janeiro e São Paulo. A política pública na China não é para rico. O trem-bala tem dois vagões de primeira classe, um pouco mais caros. Na maioria dos outros vagões, viaja gente de todas as classes sociais e backgrounds — diferente da ponte aérea, que atende um público limitado. Ultracômodo, silencioso, com wi-fi, comida, banheiro. Na China, o trem-bala é para todo mundo.

A infraestrutura é um ponto. Aí, temos a conexão da infraestrutura com o digital. A sociedade chinesa se digitalizou. Todos os pagamentos, por exemplo, são feitos por aplicativo. Ninguém usa dinheiro ou cartão de crédito. Toda a logística é digital. Eu estava viajando com um amigo, que morou na China por cinco anos. Ele estava com fome, com vontade de comer McDonald’s... A gente estava no meio da viagem de Xangai para Pequim. Ele fez o pedido pelo aplicativo e, na parada seguinte, o entregador veio até a gente, dentro do trem-bala. Isso é insano.

Em todas as mesas dos restaurantes chineses tem um código QR. Não preciso chamar o garçom ou ir até o balcão para fazer o pedido. Eu escaneio o código, peço, pago na hora e fico esperando. Se o restaurante tiver garçom, ele leva o prato na mesa, sem eu falar nada. Do contrário, eles me mandam um SMS quando a comida está pronta e eu vou até lá retirar o meu pedido. Os pagamentos digitais são impressionantes. Em Xangai e Pequim, os moradores de rua carregam um cartaz com o código QR. Eles sabem que não têm como receber em moeda ou papel-moeda. Ninguém mais carrega papel-moeda. A economia está 100% digitalizada.

Nós, brasileiros, somos muito influenciados pelos Estados Unidos. Mas hoje eu olho para os Estados Unidos e vejo um negócio antigo. Tanto do ponto de vista de como as coisas se organizam quanto da qualidade da infraestrutura — infraestrutura urbana, infraestrutura de transporte e infraestrutura digital.

Os chineses sabem que pagaram um preço para o crescimento rápido. O dano ambiental é visível — e eles têm plena consciência da devastação. Em muitos dias, em Pequim, você não consegue ver o sol por causa da nuvem de poluição. Cientes disso, estão agora trabalhando para reverter essa situação. Os veículos elétricos são a matriz de deslocamentos na China. Sem contar as motos, patinetes, bicicletas... Tudo elétrico. Não se vê uma moto a combustível. Algumas cidades, como Shenzhen, já conseguiram converter toda a frota de ônibus — 15,5 mil. A título de comparação, São Paulo tem 14 mil. Você anda pelas ruas e não ouve barulho de motor, de freio... Chega até a ser perigoso. Não dá para se guiar pelo barulho, como estamos acostumados. Agora os aplicativos de mobilidade, como o Didi, estão pressionando: para ser motorista deles, o carro tem de ser elétrico. É o início de um movimento para sanar o dano ambiental.

A sociedade está ultradigitalizada. No Ocidente, para muita gente isso representa um perigo, sobretudo em relação à falta de privacidade de dados, em um país não democrático. Eles têm o sistema de crédito social, por meio do qual analisam seus padrões de comportamento. Eles não usam essas informações para punir as pessoas, mas para medir a confiança [há relatos divergentes sobre o tema. Leia a reportagem na página 68]. O crédito social mede se você devolveu o carregador do celular, a bicicleta compartilhada... É um sistema objetivo, baseado no padrão da sua conduta. A leitura que se faz no Ocidente é que esse mecanismo tem o objetivo puramente de vigiar as pessoas. Pode ter até esse componente, mas o mais relevante, para mim, é que esse sistema permite dar crédito a quem não tem crédito.

A China não é só um Vale do Silício. Cidades como Pequim, Hangzhou e Shenzhen têm cada uma seu ‘Vale do Silício’ — com áreas de atuação diferentes. Na China, a inovação não tem um modelo único, e eu acho que é por isso que dá certo. Pequim tem seu Vale do Silício, focado em inteligência artificial. Lá, a inovação está muito ligada às universidades, e por isso é parecida com a do Vale do Silício. Na capital, estão as duas universidades mais importantes do país — a Universidade de Pequim e a Universidade de Tsinghua: Harvard e Stanford da China. Por causa dessa proximidade, a cidade tem um ecossistema de engenharia da computação dedicado a inteligência artificial. Um estudante tem uma sacada, sai da universidade, encontra um investidor, monta uma empresa e, se der certo, cresce e expande. A inovação é fundada no conhecimento.

Shenzhen, por sua vez, é o avesso disso. Lá não tem uma universidade decente. A universidade de lá é de quinta categoria. Mesmo assim a cidade é o polo de fabricação de hardware — 87% dos celulares usados no mundo são feitos nessa cidade de clima tropical, ao sul do país. Tudo o que a gente vê de eletrônico muito provavelmente foi feito em Shenzhen [veja reportagem a partir da página 78]. Na província de Hunan, o governo criou uma empresa de trens elétricos e de levitação — sistema pelo qual o trem não encosta no trilho. Ele tem um ímã que faz com que flutue. Hunan hoje só inova nisso, um ecossistema de inovação de trens de levitação.

HARDWARE Quase 90% dos celulares do mundo vêm da cidade de Shenzhen, um dos pontos visitados por Ronaldo em suas viagens (Foto: Arquivo pessoal)
E como é que a China chegou nisso? Por meio de uma competição brutal. E a gente acha os Estados Unidos competitivos... O grau de competição na China é insano. Nesse sentido, é hoje o país mais capitalista do mundo.
Um caso que ilustra bem essa competitividade é o da empresa de bicicletas sem estação, como as da Yellow em São Paulo, que você pega e devolve em qualquer lugar. Esse modelo foi inventado na China. É invenção da Mobike, empresa fundada por uma garota [Hu Weiwei, em 2015, aos 33 anos]. Ela foi o unicórnio mais rápido da história. Em um ano e meio, saiu do zero para US$ 1 bilhão.
Em um ano e meio, surgiram na China 160 empresas de bicicletas sem estação competindo com a Mobike. Cada empresa testando um modelo para ver qual daria certo e uma competindo com a outra para matar. Resultado: a Mobike faliu e foi comprada pelo grupo Meituan-Dianping. E do ecossistema de 160 empresas sobraram sete.

Certa vez, estávamos trabalhando em Shenzhen, para o documentário, quando uma menina da nossa equipe chamou a atenção para a projeção que estava sendo feita em um prédio. Era uma propaganda da Burberry e aquele era o prédio da prefeitura. Propaganda da Burberry no prédio da prefeitura? Aí nos contaram que, pagando bem, não importa saber se é da Burberry ou de outra marca. Está gerando dinheiro? Então pode. No Brasil, teria de ter uma discussão sobre a apropriação do espaço público por uma marca privada. A China é um país comunista, com partido único, mas, ao mesmo tempo, é selvagem. Às vezes, é um capitalismo mais arrojado do que o que a gente tem aqui. Lá, as empresas competem para uma matar a outra. Não tem vida boa para empresário chinês. Eles usam muito a expressão 996: ‘Nós enriquecemos porque trabalhamos das 9 às 9, 6 dias por semana’.

A equipe que trabalhou no documentário era metade brasileira e metade chinesa. Foi genial ver como chineses e brasileiros trabalham. O coordenador do lado chinês era alguém com quem a gente tinha trabalhado por e-mail, quatro meses antes do início da filmagem. Foi tudo planejado milimetricamente. Era uma operação maluca. Tinha dia em que a gente passava por três cidades... Uma vez, a gente estava em Pequim e um amigo meu contou sobre uma empresa que fabricava casas modulares com impressora 3D, um negócio imperdível, que deveríamos filmar. A gente tentou convencer o cara [o chefe da equipe chinesa] a dar apenas uma passadinha, rapidinho. E ele:
— Está no planejamento? Não? Então não dá para ir.
Insistimos e aí ele soltou a frase que, para mim, definiu o choque de culturas:
— Eu não vou tentar porque, se eu tentar, posso falhar. Se eu seguir o plano, pelo menos um sucesso eu vou garantir: o de seguir o plano.

Aí eu entendi como a China se desenvolveu: o país fez um plano e soube seguir o plano. Muitas vezes, nós, brasileiros, somos bons em fazer o plano... Eu fui uma das pessoas que construíram o plano nacional de internet das coisas no Brasil. Passamos um ano e meio trabalhando com o BNDES. O plano está pronto. É provável que, na hora de executar o projeto, apareça alguém lá no ministério: ‘Não, não... Tenho uma ideia nova aqui’ ou ‘Olha só essa oportunidade’...

Na China, não. Eles fizeram um plano e seguiram o plano. A cada cinco anos, eles fazem um plano e seguem o plano. Essa lição virou até uma brincadeira entre nós — ‘stick to the plan’. Isso é lição de vida.”.. Leia mais em epocanegocios 10/01/2020



11 janeiro 2020



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