Crescimento mais lento, queda no lucro com a Covid-19, avanço dos rivais nos EUA, barreiras de competição no exterior e críticas progressivas ao seu modelo agressivo. Como esse pacote está colocando em dúvida o futuro da Amazon e alimentando a ideia de separação do grupo de seu braço de tecnologia, a AWS
Para Jeff Bezos, fundador da Amazon, existem apenas dois dias na trajetória de uma empresa. O primeiro, quando ela se comporta como uma startup: inovando e crescendo de forma agressiva e incansável. E o segundo, marcado pela estagnação, seguida pela irrelevância e por um declínio doloroso.
À frente da gigante que completará 26 anos – ou exatos 9.500 dias – em 5 de julho, Bezos luta desde o início para que a Amazon aja sempre como se estivesse em seu “primeiro dia”. E não há dúvida que ele tem sido bem-sucedido ao propagar esse mantra.
Dos cliques, pacotes e entregas do e-commerce à infraestrutura de nuvem por trás de serviços como Zoom e Netflix, por meio do seu braço de tecnologia Amazon Web Services (AWS), a Amazon atrai uma horda de empresas e consumidores. Em contrapartida, sua postura alimenta o temor dos rivais.
A Covid-19 reforçou a relevância da companhia. Mas deu fôlego a novos competidores e fortaleceu as críticas sobre a estratégia implacável da Amazon. E nesse cenário, cresce entre os investidores a ideia de que, para evitar o “Dia 2”, é preciso separar a AWS das demais operações.
Sob a perspectiva dos números, esse plano poderia, a princípio, soar absurdo. Entre 2016 e 2018, a Amazon dobrou seu valor de mercado, chegando US$ 734 bilhões. Hoje, a empresa está avaliada em US$ 1,3 trilhão. Em 2019, a companhia faturou US$ 280 bilhões.
Outros indicadores reforçam a vitalidade da “startup” de Bezos. O Amazon Prime, serviço que reúne desde ofertas de streaming de vídeo e de música até entregas de encomendas no mesmo dia, tem 150 milhões de clientes.
E atende também os pedidos de outras empresas feitos por meio da plataforma da Amazon. Em 2018, essa frente de terceiros representou 58% das vendas realizadas no canal.
O modelo da Amazon dá à empresa acesso a uma avalanche de dados sobre as preferências e hábitos de compra dos consumidores. O que atrai anunciantes e impulsiona as receitas de publicidade online da companhia, hoje na casa de US$ 11 bilhões, ou 7% do faturamento global do setor.
Entre 2016 e 2018, a Amazon dobrou seu valor de mercado, chegando US$ 734 bilhões. Hoje, a empresa está avaliada em US$ 1,3 trilhão
Criada em 2003, a partir da base tecnológica construída para atender a própria Amazon, a AWS, por sua vez, domina o mercado de infraestrutura de nuvem e tem um papel essencial na operação. Inclusive, na geração de recursos para financiar novos projetos e negócios do grupo. Entre eles, a aquisição da rede de supermercados Whole Foods, em 2017, por US$ 14 bilhões.
Em 2019, a AWS reportou uma receita de US$ 35 bilhões e, mais importante, um lucro operacional de US$ 9,2 bilhões. É sob essa perspectiva que a ideia da separação ganha força. Apesar dos números positivos, um olhar mais apurado mostra que o modelo atual pode ser insuficiente para manter o crescimento da Amazon. E uma divisão poderia ser a alternativa para mudar os rumos.
Em desaceleração
Alguns fatores sustentam essa tese. Apesar de ainda crescer rapidamente, o ritmo do avanço da Amazon vem desacelerando. Entre 2016 e 2019, as vendas globais de produtos próprios e de terceiros na plataforma caíram de 27% para 18% – segundo dados da consultoria Sanford C. Bernstein, citados pela revista The Economist.
“Felizmente”, a pandemia do novo coronavírus ajudou nesse sentido – levando o índice a 23% em 2020. Ainda assim, a consultoria projeta que, no longo prazo, a empresa não conseguirá retomar o patamar anterior.
Ao mesmo tempo, o impulso da Covid-19 cobra seu preço. A Amazon contratou 175 mil profissionais nos Estados Unidos para atender a demanda. E priorizou a entrega de produtos essenciais, boa parte deles, de margens mais baixas. Com isso, parte do lucro foi sacrificada. Mesmo vendendo 26% mais entre janeiro e março, a última linha do balanço recuou 29% na comparação anual.
Nesse contexto, a empresa não conseguiu acompanhar o salto do e-commerce nos Estados Unidos em meio à pandemia. Em paralelo, abriu espaço para que outros nomes atraíssem os consumidores para os seus carrinhos virtuais.
A relação inclui grandes varejistas, como Target e Walmart, que têm investido para serem mais competitivas no digital, além de novos rivais, que aproveitaram para ganhar tração.
Na Covid-19, a Amazou assistiu ao avanço de varejistas como Target e Walmart, e de novos rivais, como a startup canadense Shopify
É o caso da canadense Shopify. Partindo do zero, a startup já abocanhou 5,9% do varejo online nos Estados Unidos, perdendo apenas para empresa de Bezos. E tem tudo para causar mais dores de cabeça ao bilionário.
Depois de um acordo com o Walmart, a Shopify costurou novas parcerias com o Facebook e o Pinterest, ao promover um ambiente no qual os usuários podem socializar e comprar – algo que não existe na Amazon.
Como um fator agravante para a gigante nos Estados Unidos, boa parte das famílias americanas com poder aquisitivo para pagar pelo Amazon Prime já é assinante do serviço.
Se em seu mercado doméstico, a Amazon tem uma perspectiva de crescimento mais desafiadora, no exterior, que responde por 29% da receita de e-commerce da companhia, o cenário também não é dos mais animadores.
O mercado na Europa está envelhecendo e é difícil mudar hábitos de consumo de uma população com idade mais avançada. A China é carta fora do baralho desde 2019: Bezos e sua equipe cederam à pressão das competidoras Alibaba e JD.com no país da Grande Muralha.
Na Índia, o investimento de US$ 6,5 bilhões parece ameaçado pelas duras medidas protecionistas impostas pelo presidente Narendra Modi. E há ainda a dura concorrência local da Jio Platforms, empresa que, apenas na pandemia, captou US$ 15 bilhões junto a nomes como Facebook, Silver Lake, Vista Equity Partners, General Atlantic e KKR & Co.
Enquanto isso, na América Latina, a Amazon gasta recursos e sofre para apresentar um modelo mais adequado que nomes como o Mercado Livre, já “acostumados” aos entraves burocráticos e sociais da região.
Cabeça na nuvem
Em meio a tantos entraves, o que atenua a preocupação dos investidores é a AWS. Entre os indicadores por trás dessa visão está a margem operacional da companhia, estimada em 26% em 2019, contra -1% da Amazon no varejo, segundo a Sanford C. Bernstein.
Entretanto, mesmo a AWS começa a ter sua liderança ameaçada. Outros gigantes, como Alibaba, Google e Microsoft, oferecem serviços semelhantes e estão ganhando uma parcela significativa do mercado.
A AWS viu seu market share cair de 53,7% para 47,8% entre 2016 e 2018, segundo a consultoria americana Gartner. No período, a fatia da Microsoft quase dobrou, chegando a 15,5% do mercado.
A seu favor, a AWS tem fatores como a velocidade e a confiabilidade de sua infraestrutura, que permite ainda que seus clientes façam operações mais complexas e sofisticadas.
Em contrapartida, a Microsoft tem a vantagem de já manter um longo relacionamento com clientes empresariais por meio de suas ofertas de software.
Ao mesmo tempo, a expansão da AWS pode encontrar um limite à medida que a Amazon investe cada vez mais em novos segmentos. Essa diversificação amplia as chances de empresas dos mais variados setores não se sentirem confortáveis em trabalhar com a AWS, sob o receio de cederem seus dados à varejista.
Nesse panorama, parte de Wall Street entende que, livre das amarras e do peso de financiar operações menos lucrativas da Amazon, a AWS teria um futuro mais promissor. A separação também traria mais transparência e visibilidade sobre os investimentos, resultados e perspectivas de cada operação.
No caso da AWS, o potencial é grande. Atualmente, menos de 10% do investimento de US$ 4 trilhões em tecnologia da informação é destinado à nuvem. A tendência, porém, é que boa parte desses recursos migre para esse ambiente nos próximos anos.
Sob esse panorama, analistas calculam que a AWS represente hoje um terço ou mais do valor de mercado da Amazon, em torno de US$ 500 bilhões, o que colocaria a companhia como uma das dez mais valiosas dos Estados Unidos.
Para fontes próximas ao grupo, a Amazon, por sua vez, contaria com menos recursos para apoiar seu crescimento. Entretanto, teria mais condições de resgatar sua cultura de inovação e excelência operacional, em contraste com o modelo engessado pelos seu crescimento nos últimos anos.
Na avaliação de analistas, em uma eventual cisão entre Amazon e AWS, os favoritos para assumir cada empresa seriam Andy Jassy e Jeff Wilke, atuais CEOs, respectivamente, da AWS e da divisão global de consumo do grupo.
Bezos, por sua vez, que segue como maior acionista da Amazon, com uma fatia de 12%, atuaria como um presidente-executivo, supervisionando as duas operações.
Outra corrente defende uma mudança na estrutura da Amazon. Em Washington, há uma onda crescente de políticos e especialistas em antitruste que acusa a gigante de abuso de poder. Entre eles, a senadora democrata Elizabeth Warren, que propõe a venda de negócios como a Whole Foods.
A animosidade em relação a Amazon foi fortalecida com as denúncias sobre o tratamento reservado pela empresa aos funcionários de seus centros de distribuição na prevenção à Covid-19
Nesses corredores, as críticas ao modelo da Amazon ganharam força em abril, quando o jornal americano The Wall Street Journal revelou que os funcionários da empresa usavam dados dos vendedores da sua plataforma para apoiar o desenvolvimento de projetos da companhia
Essa animosidade foi fortalecida com as denúncias sobre o tratamento reservado pela Amazon aos funcionários de seus centros de distribuição na prevenção à Covid-19. Segundo uma contagem feita por um desses profissionais, houve 1.079 casos entre esses trabalhadores.
Apesar desse barulho e diante de todo esse contexto, Bezos nunca falou publicamente sobre a ideia de separação. Para o bilionário, talvez seja preferível acreditar que, para a Amazon, o Dia 2 nunca chegará.
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