Não são apenas os Estados que estão quebrados e, por essa razão, alguns já atrasam o pagamento dos salários dos funcionários. A União também quebrou, embora ainda não deixe de honrar os vencimentos dos servidores federais. A diferença é que a União, ao contrário dos governos estaduais, pode emitir títulos, a um custo elevado, e levantar os recursos necessários ao pagamento de suas obrigações.
A tragédia fiscal brasileira é resultado de décadas de expansão do gasto público, justificada, em grande medida, pela necessidade de se cumprir o pacto social inscrito na Constituição de 1988. Nos últimos 25 anos, período que compreende as gestões dos governos democraticamente eleitos pós-ditadura militar, a despesa cresceu, em média, 6% ao ano em termos reais, isto é, acima da variação da inflação. Mas foi entre 2008 e 2015, na fase de predomínio de Dilma Rousseff no rumo das gestões petistas, primeiro como ministra-chefe da Casa Civil, depois como presidente (a partir de 2011), que a coisa desandou de vez.
Naqueles oito anos, a receita total do governo federal cresceu 14,5% em termos reais, enquanto a despesa avançou 51%. Para acomodar essa diferença, a dívida bruta do setor público saltou de R$ 1,7 trilhão em 2008 para R$ 3,9 trilhões em 2015. Nesse período, a despesa primária (que não inclui o gasto com juros da dívida) aumentou o equivalente a quase três pontos percentuais do Produto Interno Bruto (PIB) - para 19,5% do PIB em 2015; em 1991, estava em 10,8% do PIB.
União só não atrasa salários porque toma dívida no mercado
Em 2008, o Brasil vivia seu melhor momento em décadas. Ganhou o grau de investimento (o selo de bom pagador) das agências de classificação de risco, um marco na superação da crise da dívida que castigava a economia desde 1982; o PIB se expandia a um ritmo superior a 5%; a inflação estava razoavelmente sob controle.
O advento da crise financeira mundial em meados de setembro daquele ano, quando o banco americano Lehman Brothers quebrou, fez com que os economistas heterodoxos do governo, liderados por Dilma, ganhassem um argumento para começar a mudar a política econômica com a qual nunca conviveram bem: com a parada súbita da atividade no último trimestre de 2008, era preciso aumentar a demanda do setor público para estimular a economia, ou seja, abrir o cofre do Tesouro e gastar. Tecnicamente, a ideia era aproveitar a margem de manobra que havia na área fiscal para pôr em prática uma política anticíclica.
Assim foi feito em 2009, quando o Brasil passou por uma rápida recessão. Ocorre que os fundamentos na ocasião eram tão robustos que o expansionismo fiscal poderia ter se limitado àquele ano, mas não: obcecado com a ideia de eleger sua sucessora, que nunca tinha disputado uma eleição na vida, o então presidente Lula mandou a turma continuar elevando os gastos - é isso o que explica o crescimento de 7,5% do PIB em 2010, muito acima do potencial do país.
Um dado assombra: de 2007 a 2015, o crescimento real da despesa primária do governo central (56%) foi o triplo da elevação do PIB (18%). É o que faz alguns economistas afirmarem que o Estado brasileiro não cabe dentro do PIB do país. Em resumo, a ruína provocada pelos governos Lula e Dilma tem três explicações: o governo aumentou os gastos não obrigatórios de forma irresponsável e, mesmo alertado, não tomou nenhuma medida para enfrentar o crescente déficit da previdência social, antes, pelo contrário, adotou política de correção do salário mínimo que agravou sobremaneira o problema.
Os brasileiros enfrentam agora as consequências perversas dos múltiplos erros cometidos pelos últimos dois governos: inflação persistentemente alta, com a volta a dois dígitos no ano passado (10,6%); recessão mais longa da história (em março de 2017, fará o terceiro aniversário; 12 milhões de pessoas desempregadas e cerca de oito milhões subempregadas; taxas de juros reais e nominais elevadas.
O setor público brasileiro nunca conseguiu zerar o déficit orçamentário, o que significa dizer que o Estado foi sempre obrigado a ir ao mercado tomar dinheiro emprestado para cobrir as contas. O déficit vinha se situando, porém, entre 2% e 3% do PIB, um nível aceitável. Se existe déficit, a tendência natural da dívida é crescer porque o Tesouro vai ao mercado tomar dinheiro emprestado. Foi justamente para impedir que a dívida continuasse aumentando de forma exponencial que o governo FHC começou a gerar superávits primários nas contas.
Os recursos do superávit são usados para pagar juros. Com isso, a dívida se estabiliza. Quanto maior a dívida, maior é a despesa com juros. Entre 2008 e 2015, a dívida cresceu R$ 2,2 trilhões. Logo, o gasto com juros também explodiu - em 2015, o governo torrou o equivalente a 8,46% do PIB com juros; neste ano, até outubro, 6,45% do PIB.
No ano passado, o déficit nominal do setor público consolidado (União, Estados e municípios) foi de 10,34% do PIB. Em tese, portanto, o governo não tem dinheiro para pagar o funcionalismo e outras despesas, mas, como o calote ainda não é tolerado, o Tesouro se endivida para honrar os salários. Engordou a dívida em dez pontos percentuais do PIB apenas em 2015. Neste ano, a dívida crescerá um pouco menos, mas, em dois anos, como herança maldita da gestão Dilma, ela terá subido quase 20 pontos percentuais de PIB. Os rentistas agradecem.
A PEC 55, que cria um teto para os gastos, proibindo a despesa total de subir acima da inflação por 20 anos, foi proposta para estancar essa sangria. É uma medida radical para uma situação que saiu do controle. O Estado brasileiro não tem mais condições de continuar elevando a dívida para fazer frente aos déficits orçamentários. Depois da adoção do teto, começará a boa discussão: diante da escassez de recursos, que gastos deverão ter prioridade no orçamento público?
Leitores escrevem para dizer que as análises desta coluna não consideram os gastos com juros. A questão é que a despesa com juros não é discricionária. O governo não decide quanto vai pagar de juros, como faz, por exemplo, ao escolher os setores e grupos da sociedade que subsidia. O gasto com juros é dado pelo tamanho da dívida pública.
O nível de taxa de juros é outra discussão, mas também não é fixado por Brasília. É um preço da economia e reflete a forma como o Estado se financia. Está também intrinsecamente ligado à estratificação da economia, fato agravado pelas gestões petistas - como 50% do volume de crédito é subsidiado, beneficiando principalmente grandes empresas, que possuem outras fontes de financiamento, o Banco Central cobra da outra metade (consumidores e pequenas e médias empresas) um juro bem mais alto para que o efeito sobre a inflação seja o mesmo.
Cristiano Romero é editor-executivo e escreve às quartas-feiras - Valor Econômico
Leia mais em portal.newsnet 30/11/2016