26 junho 2017

Empresas sem o olho do dono

O recente encurrala- mento diplomático do Qatar por seus vizinhos chamou a atenção para o tesouro de US$ 335 bilhões em investimentos mantidos por seu fundo soberano ao redor do mundo. O portfolio mostra que mesmo os xeques abrem mão do controle quando aplicam nas chamadas corporations, empresas abertas que, por terem o capital pulverizado, não possuem bloco de controle. É o caso de companhias como Tiffany e Iberdrola, nas quais o emirado tem participação relevante, mas não o suficiente para definir os rumos do negócio. Uma tradição do mercado americano, as "empresas sem dono" passam por uma fase de questionamento diante da multiplicação de lançamentos de ações por firmas de tecnologia nas quais os fundadores querem continuar a mandar.

No Brasil, porém, o modelo nunca pegou e, considerando o critério mais rígido, só sete empresas listadas na B3 (antiga Bovespa) têm capital pulverizado.

As corporations se firmaram como modelo societário americano nos anos 1930, após o crash da Bolsa de Nova York, segundo Evandro Pontes, professor de Direito Societário do Insper. A criação, em 1934, da Securities and Exchange Commission (SEC, órgão que regula o mercado de capitais nos EUA) balizou o investimento em ações como uma opção segura para o americano médio. As companhias tinham acesso a uma reserva de capital junto às pessoas físicas para financiar sua expansão, fragmentando sua estrutura societária.

— A história de pulverização de capital começa por causa de uma peculiaridade do capitalismo americano, no qual toda a poupança popular foi alocada em ações. A pulverização virou regra por lá — diz Pontes.

SHOW PARA ACIONISTAS
Antes da crise financeira de 2008, 65% dos adultos detinham investimento em ações, segundo a Gallup. Depois que a recessão devastou o valor dos papéis em Bolsa, muitos americanos fugiram do mercado, mas o percentual era de 52% em 2016. É o menor em duas décadas, mas está muito acima do índice visto no Brasil, onde menos de 4% da população em idade ativa aplica em ações.

— Por isso que, quando o Walmart fazia assembleia de acionistas nos anos 1990, ele fechava uma cidade inteira e organizava um show do Michael Jackson — exemplifica Renato Vilela, professor de Direito Societário do GVLAW, da FGV-SP. — Mas, mesmo lá nos EUA, já está havendo uma concentração maior. A literatura jurídica vem demonstrando que a ideia de que a pulverização das ações representa uma democratização da gestão da empresa está se tornando ultrapassada.

Uma pressão importante para mudar o paradigma das empresas sem dono veio do Vale do Silício. Muitas start-ups se viram obrigadas a levantar bilhões na Bolsa para satisfazer seus planos de expansão sem que os fundadores abdicassem do controle sobre os negócios. A oferta pública de ações (IPO, na sigla em inglês) da Google, em 2004, foi emblemática nesse sentido.

Para manter as decisões nas mãos dos fundadores Larry Page e Sergey Brin e do diretor executivo, Eric Schmidt, a firma decidiu emitir duas classes de ações, sendo que o tipo que ficaria com eles teria peso dez vezes maior em votações. O modelo foi inspirado no de duas empresas peculiares para os padrões americanos: Ford, na qual a família do fundador segue ditando os rumos, e Berkshire Hathaway, onde quem manda é Warren Buffett.

Outros IPOs de start-ups usariam expediente semelhante, como Facebook e Linkedln. Com esse movimento, a quantidade de empresas americanas com bloco de controle cresceu. Segundo estudo do Investor Responsibility Research Center Institute (IRRCI), o número cresceu de 87 para 114 entre 2002 e 2012 no universo do índice S&P Composite 1500, que reúne as 1.500 empresas abertas mais relevantes dos EUA e abrange 90% do mercado. Desde então, o número caiu para 105, mas segue 20% acima do nível de 2002.

O estudo do IRRCI não chega a uma conclusão clara sobre qual modelo gera melhores resultados, mas sugere que empresas com bloco de controle têm desvantagens em retorno total ao acionista, crescimento de receitas e pagamento de dividendos. Elas se saem melhor, porém, no critério de retomo sobre o ativo.

— Alguns estudos já tentaram demonstrar que existe uma valorização maior da companhia se seu capital é pulverizado, mas não são conclusivos. Por outro lado, há a percepção de que, quando o capital é pulverizado, os administradores têm maior autonomia para decidir seu próprio salário e acabam recebendo mais do que a média do mercado — afirma Vilela, do GVLAW.

No Brasil, esse dilema é quase inexistente. Embora não haja regra clara sobre o conceito de "pulverização" os especialistas identificam raras empresas sem bloco de controle entre as 339 companhias que têm ações na B3. Segundo Pontes, do Insper, um dos motivos para isso é o fato de que, historicamente, em vez das pessoas físicas, os principais sócios corporativos no Brasil são o Estado e, mais recentemente, investidores institucionais, como BNDES e fundos de pensão.

— Se tomarmos por base a lei que estabelece controle como detenção de 50% 1 das ações com direito a voto, temos por volta de 50 companhias que se dizem "sem controlador" no Brasil. Mas as que contam com dispersão cujo maior acionista tem participação na casa dos 10% do capital votante são, na melhor das hipóteses, apenas sete— disse, citando B3, Renner, Gafisa, BR Malls, Embra- er, Hering e PDG.

MENOS CONFLITO
A varejista Renner foi a pioneira do modelo no Brasil. A americana ICPenney, que controlou a Renner de 1998 a 2005, se desfez de suas ações naquele ano e decidiu oferecê-las em Bolsa. Foi uma espécie de IPO, mas sem a emissão de novos papéis. Com isso, o capital foi pulverizado. Hoje, o maior acionista é a Aberdeen Asset, com 14,93% das ações.

Para a Renner, o resultado tem sido positivo: de 2006 até 2016, sua receita anual saltou de R$ 1,43 bilhão para R$ 6,45 bilhões.

— Essa estrutura explica parte importante do nosso desempenho. Para ter resultados consistentes, a empresa precisa de um posicionamento de mercado definido, e não há dúvida de que a governança é fundamental para isso. A estrutura de corporation ajuda, uma vez que elimina o viés de conflito de interesse nas decisões de conselho. O modelo permite que nossos conselheiros sejam independentes — disse o diretor financeiro da Renner, Laurence Beltrão Gomes.

Mas, se não tem sócio controlador, a Renner tem uma figura incomum nas empresas pulverizadas americanas: um diretor-executivo que está há décadas à frente da empresa, José Galló.
— Os administradores têm mais autonomia, mas a responsabilidade é maior. As decisões ficam concentradas nos gestores — disse Gomes.  O Globo Jornalista: Rennan Setti  Leia mais em portal.newsnet 25/06/2017 

26 junho 2017



0 comentários: