Em nossa opinião, o planejamento tributário será válido sempre que o contribuinte (a) promover uma alteração na realidade jurídica anterior, ainda que recorrendo a formas pouco usuais ou mais complexas do que outras disponíveis; e (b) aceitar todos os efeitos decorrentes da estrutura que adotou, os favoráveis aos seus interesses e também os contrários. Falhando a primeira condição, ter-se-á simulação absoluta. Falhando a segunda, simulação relativa.
Pode-se dizer que a proposta é simplista e impõe ônus excessivo ao legislador, acarretando ademais a complexificação do sistema tributário pelo acúmulo de normas antielisivas específicas. Esses são, de fato, os defeitos de que padece, mas que temos por preferíveis àqueles que assolam a outra alternativa, como apontamos em dois artigos publicados aqui: aumento do subjetivismo e da imprevisibilidade, com dano irreparável à segurança jurídica[1].
A nosso ver, o aproveitamento fiscal do ágio fundado na expectativa de rentabilidade futura, quando da incorporação da investida pela investidora (ou vice-versa), é decorrência direta do conceito constitucional de renda, que tem por elemento central o direito à dedução das despesas realizadas para a obtenção do ganho tributável. As lições de Luís Eduardo Schoueri são irrebatíveis[2]:
● o ágio por expectativa de rentabilidade futura representa um sobrereço que a investidora paga pela investida (ou por uma participação no seu capital) por vislumbrar a possibilidade de lucros compatíveis com o montante despendido;
● este ágio (despesa) é fiscalmente indedutível na investidora, porque a receita que a investida lhe proporciona, medida por equivalência patrimonial, é intributável;
● quando da incorporação, o ágio e as receitas a ele imputáveis passam a coexistir na mesma pessoa, devendo ambos ser considerados para efeito de apuração dos tributos sobre o lucro.
Sendo assim, a dedutibilidade é direito do contribuinte, e não favor fiscal a ser interpretado restritivamente, ou norma indutora a exigir leitura teleológica, e muito menos norma antielisiva (como pode uma dedutibilidade ter tal natureza?). O norte é o conceito constitucional de renda, ao qual devem ser cotejadas todas as restrições impostas pela lei ou pelo Fisco à dedução do ágio, inclusive o uso de empresa-veículo.
Indo diretamente a esse ponto, observamos que a expressão tem sido utilizada de forma indiscriminada para designar hipóteses muito díspares, merecedoras de tratamento tributário também diverso.
Iniciemos pelos casos Ficap (Acórdão 105-17.219[3]), Libra (Acórdão 101-96.724) e Gerdau (Acórdãos 1101-00.708 e 1101-00.710). A situação fática é idêntica: a empresa A integraliza o capital de C com ações que detinha em B, gerando ágio em C. Depois B incorpora C (ou o contrário) e pretende deduzir o ágio na apuração do IRPJ e da CSLL.
As decisões foram contrárias ao contribuinte nos dois primeiros casos, e favoráveis nos dois últimos. Para nós, trata-se de negócio inexistente (simulação absoluta), mera sucessão de atos cartoriais que resulta em quadro final idêntico ao inicial, sem a intervenção de qualquer terceiro independente.
O problema não está na troca de ações, que é pagamento como qualquer outro, mas no caráter solipsista da operação, que se processa inteiramente no seio de um mesmo grupo econômico, sem a necessária alteridade.
Diferentes são os casos Biossintética (Acórdão 1402-001.310), Itaucard (Acórdão 1102-001.018) e Carrefour (Acórdão 103-23.290), em que A adquiriu ações da empresa não relacionada B e integralizou com elas o capital de C, que depois incorporou B (ou foi incorporada por ela). Embora o terceiro processo tenha sido julgado em favor do Fisco, temos que a solução correta é a contrária, fortes na premissa — expressa no primeiro julgado — de que “é regular o planejamento, sob amparo dos artigos 7º e 8º da Lei 9.532/97, mediante a utilização de empresa-veículo, desde que não resulte em aparecimento de novo ágio, tampouco em economia de tributos diferente da que seria obtida sem a utilização da empresa-veículo”.
De fato, a dedução seria aceitável caso A incorporasse B. Nada obsta, assim, que o mesmo ágio seja deslocado no âmbito do grupo com o emprego de uma empresa-veículo, que por isso mesmo qualificamos como “veículo de ágio”. Esse passo adicional seria desnecessário e, em rigor, não tem nenhum propósito negocial, mas a operação subjacente é real, o que revela a diferença entre esses dois conceitos — o primeiro irrelevante para a definição da oponibilidade do planejamento ao Fisco e o segundo central para a sua própria qualificação com tal, e não como simulação absoluta.
Já nos casos Dufry (Acórdão 1302-001.182) e Santander (Acórdão 1402-00.802), ambos julgados a favor do contribuinte, as empresas-veículos foram constituídas por grupos estrangeiros adquirentes de investimentos no Brasil com o intuito de localizar aqui, e não em seus países de origem, o ágio gerado na compra. Bem por isso, qualificamo-las de “veículos de compra”.
No caso Dufry, o investidor constituiu a sociedade no Brasil, capitalizou-a em dinheiro, e esta fez a compra, obtendo o ágio. Embora a aquisição pudesse ter sido feita diretamente pela controladora estrangeira, situação na qual o ágio teria sido gerado em seu país de residência (sem efeitos fiscais no Brasil), nada proíbe a estruturação adotada, que é verdadeira, ainda que concebida com intuito primordialmente tributário.
O caso Santander apresenta uma particularidade adicional — que não prejudica a sua validade —, consistente no fato de que a aquisição das ações foi feita pela controladora estrangeira, que depois integralizou com elas o capital da empresa-veículo no Brasil, mais tarde incorporada pela investida.
Tanto quanto no cenário interno, a transferência internacional do ágio apenas significa que a empresa brasileira, à semelhança de sua controladora estrangeira, se dispôs a atribuir às ações da investida um valor maior do que o de integralização (os casos são anteriores à Lei 12.973/2014), dada a perspectiva de rentabilidade futura.
No caso Cremer (Acórdão 1102-001.006), por fim, houve dois ágios repelidos pelo Carf:
● um interno, gerado por meras operações de papel, sem a participação de terceiros — e, portanto, inválido;
● outro nascido da integralização, por holding brasileira cujo capital pertencia integralmente à holding americana em que se associaram os grupos vendedor e comprador do controle da investida, de novas ações desta última[4]. A estrutura, que corresponde a uma operação societária real entre partes não relacionadas, foi montada para que o ágio fosse gerado na “empresa-veículo de venda” brasileira (a holding nacional), que depois foi incorporada pela investida, e não na investidora estrangeira. A falta de propósito negocial da intermediária não obsta, a nosso ver, o aproveitamento fiscal desse segundo ágio.
Assim, concordamos com a conclusão do acórdão em relação ao primeiro ágio e divergimos quanto ao segundo, ressaltando que discrepamos inteiramente da sua fundamentação jurídica, calcada na qualificação do direito ao aproveitamento fiscal do ágio como benefício fiscal do tipo isenção.
Uma palavra, para concluir, sobre possíveis alterações trazidas ao tema pela Lei 12.973/2014. Importa comparar a redação do seu artigo 22 com a do dispositivo que o antecedeu (o artigo 7º da Lei 9.532/97):
“Artigo 22. A pessoa jurídica que absorver patrimônio de outra, em virtude de incorporação, fusão ou cisão, na qual detinha participação societária adquirida com ágio por rentabilidade futura (goodwill) decorrente da aquisição de participação societária entre partes não dependentes...”
“Artigo 7º. A pessoa jurídica que absorver patrimônio de outra, em virtude de incorporação, fusão ou cisão, na qual detenha participação societária adquirida com ágio ou deságio...”
Nota-se que uma cláusula restritiva que não existia no comando originário foi introduzida na regra atual. A dúvida está na sua extensão: trata-se somente de exigir que o ágio tenha tido origem em uma operação com terceiro (vedação do ágio interno), ou ainda de limitar a sua dedutibilidade à empresa que teve contato com aquele, vedada a sua transferência a outra sociedade do mesmo grupo?
A primeira leitura atribui à regra a função de combater simulação absoluta equivocadamente qualificada por alguns (inclusive por acórdãos do Carf) como hipótese de planejamento tributário. A segunda transforma-a em norma antielisiva específica voltada a obstar a circulação, por meio de operações destituídas de business purpose, de ágio legitimamente nascido da negociação entre partes não relacionadas.
Inclinamo-nos pela primeira alternativa, desde logo por uma razão gramatical. De fato, tudo o que a regra exige é que o ágio seja decorrente de negociação entre partes independentes, e isso não deixa de ser verdade pela sua simples transferência no interior do grupo. Caso esta última fosse o alvo do legislador, a redação teria sido outra, vinculando o requisito da alteridade não ao ágio, mas à operação que lhe deu origem, o que resultaria em algo como: “a pessoa jurídica que adquirir participação societária com ágio por rentabilidade futura de sociedade não dependente, e absorver o patrimônio desta por incorporação, fusão ou cisão...”.
Pensamos, assim, não haver espaço para dúvida. Ainda que houvesse, e aqui está a nossa segunda razão, a solução deveria apontar para a garantia da liberdade negocial do particular, sobretudo quando se considera que o direito em questão é consequência necessária do conceito constitucional de renda.
A problemática das empresas-veículos, em suas múltiplas facetas, e todas as demais relativas ao ágio terão de ser pacificadas pelo novo Carf, e não está descartado que ensejem relevante contencioso judicial.
[1]http://www.conjur.com.br/2012-jun-13/consultor-tributario-direito-fundamental-economizar-impostos;
http://www.conjur.com.br/2015-ago-08/igor-mauler-santiago-governo-criminaliza-planejamento-tributario
[2]Ágio em Reorganizações Societárias (Aspectos Tributários). São Paulo: Dialética, 2012, p. 43 e ss.
[3]Esta referência e todas as seguintes são a acórdãos do Carf.
[4]O acórdão não prima pela clareza na descrição dos fatos. Segundo pudemos compreender, não houve venda de ações preexistentes, mas alteração do controle mediante a entrega das ações da empresa veículo — a holding brasileira detentora de 100% do capital da investida — a holding americana cujo capital espelhava o novo equilíbrio entre o grupo originário e o novo investidor. Os antigos acionistas nada receberam no ato. Só o fariam mais tarde, quando a investida (da qual agora se tornaram minoritários) fosse vendida a terceiros. Por Igor Mauler Santiago - sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG. Membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB. Leia mais em conjur 19/08/2015
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