“Mesmo que a capacidade de investimento seja baixa, quanto mais se espera para se posicionar, mais dura será a mudança”, alerta Régis Nieto, sócio-líder do Boston Consulting Group (BCG) para a área automotiva no Brasil. O executivo foi entrevistado no AB Webinar, conversa transmitida ao vivo para a audiência, que pôde enviar perguntas ao especialista.
Especializada em apoiar a alta gestão das empresas no desenho de estratégias, o BCG tem trabalho fortemente na área de mobilidade. Segundo Nieto, o pior erro que uma empresa que atua no segmento pode cometer localmente é deixar de trabalhar para gerar inovação. Para o especialista, ainda que a capacidade de investimento seja baixa, é essencial ir em busca de novas soluções.
“As peças dos automóveis vão mudar. As fabricantes de componentes que daqui a 30 anos deixarão de existir não podem se dar ao luxo de ficar paradas”, alertou. A seguir acompanhe os principais trechos da entrevista.
A palavra disrupção está se tornando clichê, sendo usada em qualquer situação. Na sua opinião, o termo se aplica ao momento atual do setor automotivo?
As palavras inovação e disrupção estão sendo utilizadas demais em diferentes setores e o meu papel é mostrar que, de fato, o setor automotivo está se aproximando de uma disrupção. Esta indústria vai mudar nos próximos dez anos mais do que mudou nos últimos cem. A transformação parte de vários pontos: o produto vai se mudar fundamentalmente, o cliente, o jeito de vender veículos e, ainda, a origem do lucro para as empresas.
Por disrupção entende-se quebra bruta do status quo. Em que área da indústria esse movimento deve se intensificar?
Teremos três grandes vetores de disrupção: o carro elétrico, autônomo e conectado. Estão ligados ao produto, mas também ao modo de vender e consumir. Prevemos que, por volta de 2030, metade da produção será de veículos com alguma forma de eletrificação. Agora as pessoas investem em um modelo com a tecnologia porque é mais amigável ao meio ambiente, é também um item de luxo. Há pouco apelo econômico. Em alguns anos a escala vai mudar e o carro elétrico será mais interessante financeiramente para a maioria dos consumidores do que o automóvel a gasolina, por causa da redução do custo da bateria com o ganho de escala e, por outro lado, pelo aumento do custo do carro a combustão em consequência das regulamentações mais duras de emissões.
E o carro autônomo?
Pensamos que está muito distante, mas a tecnologia está razoavelmente próxima. É um pouco mais difícil fazer a estimativa de quando irá chegar, porque depende de regulamentação. Um estudo do BCG diz que por volta de 2030 a tecnologia será economicamente viável e talvez 10% dos carros vendidos serão capazes de dirigir sozinhos por todo ou quase todo o tempo.
E quais são as expectativas para o veículo conectado?
Muitos dos carros atuais, inclusive vendidos no Brasil - e não são apenas carros mais caros, mas também os de entrada -, são conectados. Têm uma série de serviços online e, eventualmente, vão começar a conversar uns com os outros.
A inovação acaba ficando muito nas mãos das matrizes das empresas automotivas. Como você percebe a postura das subsidiárias locais em relação ao assunto?
Quando pensamos em uma mudança deste porte do produto, a matriz certamente vai empurrar. Não tem como ser diferente. Por outro lado, quando olhamos para a mobilidade estamos falando de um problema local, não global.
O Brasil, por ser um país em desenvolvimento, tem questões específicas: a primeira e a última milha, a segurança, a falta de pulverização do transporte público, falta de eficiência do sistema. Se pensarmos nos consumidores também há uma diferença. Mesmo quem tem renda mais baixa é muito conectado no Brasil, sedento por novidades. Por isso somos um dos maiores mercados para soluções como Waze e Uber. Estas são questões que precisam ser desenvolvidas aqui. O entendimento de como se posicionar diante do futuro da mobilidade tem forte influência local.
E quais são as maiores oportunidades locais neste novo contexto da indústria? É na área da mobilidade?
Temos visto muitas soluções tentando resolver a primeira e a última milha, como a bicicleta ou o patinete elétrico. Há muitos jogadores se movimentando nessa área, como as plataformas de carro compartilhado, como a Uber. A questão é: como as empresas mais clássicas do setor automotivo podem entrar nessa? Outra grande oportunidade está na oferta da tecnologia que facilita a mobilidade, recursos de cidades inteligentes, aplicativos que contribuem para a locomoção no trânsito. Há uma série de novos negócios a serem explorados que exigem movimentação dos jogadores locais.
Quais serão as mudanças futuras em relação ao segmento de manutenção automotiva?
A manutenção de um carro elétrico é bem mais simples do que a manutenção de um modelo a combustão interna. Então, espera-se uma mudança na necessidade de manutenção. A oficina precisará ter infraestrutura diferente para lidar com a altíssima tensão que há nesses carros. Ainda assim, a mudança propriamente dita seria na demanda por manutenção, algo que pode balançar um pouquinho as métricas financeiras das empresas aqui.
E o impacto da disrupção nas concessionárias?
No futuro teremos o carro elétrico, conectado, autônomo e compartilhado. Quem compra isso? Provavelmente teremos grandes frotas disponíveis em plataformas de mobilidade. O grande comprador será a empresa de mobilidade ou, por exemplo, as locadoras. O papel das concessionárias na venda do carro será muito limitado.
Por outro lado, a necessidade de manutenção dessas frotas continuará existindo. As concessionárias têm tudo para conseguir se posicionar aí, mas a transição não é automática. Elas serão obrigadas a pensar no cenário futuro e a investir. As jogadas precisam começar a ser feitas agora.
A maior parte das empresas que trabalham com mobilidade compartilhada é deficitária. As empresas automotivas, muitas delas financeiramente saudáveis, têm agora o desafio de começar a investir neste mercado que não tem uma monetização tão simples. Como você avalia este movimento?
Aqui temos um dilema interessante. Se você demora muito para entrar no novo mercado, provavelmente ficará muito atrás quando as coisas acelerarem. Agora, se entra muito cedo, precisará investir por bastante tempo até se tornar lucrativo.
Lançamos recentemente um estudo sobre mobilidade que avalia a viabilidade econômica dessas grandes frotas de carros elétricos, autônomos e compartilhados. A conclusão é que este modelo tem grande potencial econômico, com lucro considerável se analisarmos cidades grandes, com mais de dois milhões de habitantes. Conforme as cidades vão diminuindo de tamanho, no entanto, a fórmula para de funcionar. Não há densidade suficiente de demanda para essa frota ser economicamente viável. Assim, o que provavelmente veremos é que o modelo de mobilidade de grandes cidades será bastante diferente do adotado em pequenas cidades.
Este movimento já começa a acontecer?
Em breve vamos divulgar um estudo sobre o futuro da mobilidade no Brasil em que entrevistamos milhares de consumidores. A pesquisa mostra que os aplicativos de mobilidade compartilhada têm penetração enorme. É um pouco maior na classe A, mas ainda assim em torno de 53% das pessoas da classe C dizem que já usam o serviço ao menos uma vez por semana. Se você vai para cidades pequenas, esse número é bem diferente. Enquanto nos grandes centros 60% de pessoas usam carro compartilhado ao menos uma vez por semana, em média, nas cidades pequenas este porcentual cai para cerca de 30%.
A tendência é de mais parcerias entre a indústria automotiva, startups e empresas de tecnologia?
Esta é uma decisão muito importante da indústria automotiva, que pode escolher ser provedor de carros para as plataformas de mobilidade. O problema, neste caso, é a perda de contato com o consumidor final. As montadoras também podem ter as suas próprias plataformas. O benefício estaria na proximidade com o cliente final e no acesso a uma nova fonte de lucro.
Estamos em um momento delicado da indústria local. Há melhora das vendas ao mesmo tempo em que o setor encara notícias como o fechamento da fábrica da Ford em São Bernardo do Campo. Quais são os pontos de atenção para a indústria nesse momento de mudança de contexto?
Boa parte da sensibilidade é o tamanho da demanda. Como sabemos, desde o pico de vendas em 2012 o mercado caiu bastante, com uma redução da lucratividade, como era de se esperar em uma indústria que tem bastante investimento em capital e custos fixos.
A grande pergunta é como adequar a empresa ao novo panorama de demanda de forma lucrativa? Isso envolve pensar no portfólio e precificação, mas também em como usar a tecnologia internamente: ganhar eficiência para gerenciar a cadeia de valor, a logística, o pedido de peças, o relacionamento com os fornecedores, a produção dos veículos, a venda... Tudo precisa ser organizado de uma nova maneira pensando no mundo digital.
Ao invés de pensar apenas para fora, no consumidor, as empresas precisam pensar no que a tecnologia pode trazer para dentro das organizações, em como se posicionar rapidamente para transformar isso em vantagem competitiva.
Qual é a tendência para a produção global de veículos? Com as novas tendências de mobilidade os volumes devem cair no longo prazo
Não necessariamente a produção vai cair muito. Há o pensamento de que as pessoas não terão mais carros por causa do surgimento das grandes frotas de automóveis que, ao invés de serem usados em apenas 10% do tempo, como ocorre hoje, estarão em utilização o tempo todo, de forma mais eficiente. Por outro lado, se hoje um carro dura 10 ou 15 anos, um automóvel que roda o tempo todo será substituído a cada dois, três anos. Isso compensa em boa parte a perda do volume. É difícil dizer qual é o ponto de equilíbrio, o que está bastante claro é que a origem do lucro das empresas vai mudar.
E qual será a origem do lucro?
Hoje a maior fonte de lucratividade está nos componentes ligados ao motor a combustão, na venda desses carros, no financiamento e também no pós-venda. Isso vai mudar muito e coisas novas irão surgir. As plataformas de mobilidade passarão a ser lucrativas e toda a monetização da conectividade e dos dados, que hoje praticamente não existe, deve se tornar relevante.
No futuro a relação com o consumidor vai ser da montadora ou de grandes provedores de tecnologia para o setor, como Bosch, Continental, ou de fora desta indústria, como o Google?
É uma pergunta que envolve outra questão: Será que o consumidor do futuro vai ligar para a marca do carro? Hoje as pessoas se importam porque elas dirigem. No momento em que isso vira uma commodity, uma plataforma em uma frota de carros autônomos, boa parte da motivação para gostar de carro não vai existir mais. O pensamento pode ter como foco apenas a plataforma digital que conecta as pessoas às frotas, intermediando o deslocamento.
Os atributos desse novo automóvel são muito diferentes. Questões como performance e prazer ao dirigir praticamente desaparecem. Será relevante o carro ter um ambiente interno que te ajude a otimizar o seu tempo lá dentro, fazendo outras atividades durante o deslocamento.
A infraestrutura de recarga para carros elétricos deve ser um problema para o avanço da tecnologia no Brasil?
Nos outros países estão surgindo redes de carregadores super rápidos, que conseguem dar boa parte da carga no carro em 30 minutos. Sempre ouvimos que o Brasil é atrasado em infraestrutura, por isso o carro elétrico não vai dar certo. Precisamos lembrar que em alguns anos implantamos uma rede com 40 mil postos de combustível. Para instalar cada um deles precisamos escavar, fazer uma obra gigantesca. Um carregador é algo bem mais simples que um posto de gasolina.
Talvez eu seja um otimista. Mas acho difícil acreditar não vamos conseguir de maneira razoavelmente rápida implantar uma rede de carregadores que suporte as necessidades dos usuários de carros elétricos. Por sinal essa é outra nova oportunidade que surge no mundo da mobilidade.
Também temos outra polêmica relacionada ao carro elétrico por causa do etanol, que já seria um combustível com ciclo de CO2 mais limpo e, portanto, o Brasil não teria necessidade ambiental de adotar o carro elétrico. Qual é a sua opinião sobre isso?
No caso do carro elétrico, precisamos pensar no nível de emissões que temos desde a produção. Fabricar baterias exige o uso de metais pesados, um outro tipo de poluição, além da emissão da geração de energia. A mesma coisa com o carro a etanol. Há todo o ciclo da cana, que tem os seus malefícios e benefícios, a montagem do carro é mais simples e as emissões que saem do escapamento são diferentes. A visão do futuro passa por pensar de uma maneira fim a fim. Algumas movimentações são interessantes, como a combinação do elétrico com o etanol, o carro híbrido com etanol. Esse será o diferencial do Brasil.
Algum governo tem contribuído mais com esse novo ecossistema, com a construção do futuro da indústria automotiva? Qual deveria ser o papel dos governos nesse momento?
No exterior há uma série de países com licença e apoio governamental que está testando frotas de carros autônomos de forma razoavelmente ampla. A gente vê cidades se preparando para o futuro da mobilidade. Uma das mudanças com a chegada de frotas de carros autônomos, elétricos e compartilhados é a necessidade de vagas. Você precisará de muito menos estacionamento porque os carros não vão parar. Este espaço será devolvido à população. As coisas vão mudar e seria interessante os prefeitos e governadores do Brasil se movimentarem para isso - como acho que já estão fazendo.
As locadoras vão se manter como players desta nova mobilidade?
No futuro o carro torna-se muito mais um serviço do que um ativo. Nessa nova jornada, as locadoras têm papel muito relevante. Já falamos que no futuro um dos modelos de mobilidade envolverá frotas de carros elétricos, autônomos e compartilhados. A dúvida é quem vai ser o dono dessa frota. Uma das respostas está nas plataformas, como a Uber, mas não sabemos se há interesse em fazer esta gestão. As montadoras também podem ser as donas das frotas, o que seria um modelo de negócio muito diferente do atual. Outra opção são as locadoras. Boa parte dos motoristas de Uber hoje já aluga os carros. As locadoras estão se posicionando e serão um possível jogador nesse novo ecossistema.
Enquanto grandes organizações multinacionais investem muito em inovação, a cadeia automotiva no Brasil tem muitas empresas pequenas e médias. Como gerar valor com novos modelos de negócio nesse contexto em que a capacidade de investir é tão baixa?
A dura verdade é: o mundo da mobilidade vai mudar. As peças dos automóveis vão mudar. As empresas que fabricam autopeças que daqui a 30 anos deixarão de existir não podem se dar ao luxo de ficar paradas.
Mesmo que a capacidade de investimento seja baixa, quanto mais se esperar para se posicionar, mais dura será a mudança. Precisamos encontrar formas criativas de nos adaptar ao futuro.
Uma delas é fazendo parcerias. Juntar-se a outras empresas ou startups que têm tecnologias para se posicionar frente ao novo mundo. Não tem resposta fácil aqui. Buscar novos investidores é uma opção. Oportunidades não faltam. Dinheiro às vezes falta e é preciso ser criativo para conseguir os recursos necessários.
Como fica esse cenário de disrupção no transporte de cargas?
A parte mais fácil para o carro autônomo é dirigir em linha reta na estrada – algo muito mais simples do que na cidade. Um dos primeiros segmentos que o caminhão autônomo vai atuar é provavelmente o deslocamento em grandes distâncias nas estradas. O motorista dirige da origem até a estrada. Na estrada é o caminhão autônomo e, no destino, o motorista leva para dentro da cidade.
Haverá espaço para todas as marcas atuais nesta nova concepção de mobilidade?
É difícil dizer. O que está acontecendo é que montadoras estão fazendo parcerias. Se isso vai levar a uma consolidação do mercado, não sei. Há quem afirme que o mundo já caminharia para uma consolidação de grandes montadoras mesmo antes do avanço dos elétricos e autônomos. Aconteceu, mas menos do que muitos imaginavam. Talvez esse novo mundo coloque uma pressão a mais para a consolidação. Algo que já acontece são as parcerias – um movimento que deve se intensificar ainda mais.
As parcerias acontecem tanto entre empresas do setor automotivo quanto com gigantes de tecnologia e startups. Essas duas cadeias de valor vão convergir no futuro?
Sim. O motor, a suspensão e os fatores de diferenciação do automóvel e que são a competência-chave das montadoras, mudarão em um carro muito mais tecnológico, que recebe um usuário que não está ali para dirigir. É necessário desenvolver novas competências e ao mesmo tempo ter parceiros que sejam muito bons nas novas demandas, em alavancar, fazer parcerias para surfar em um mundo em que o consumidor quer coisas diferentes no carro.
O carro como conhecemos hoje vai acabar?
Desde que nasci eu sou doido por carro. Muitas pessoas vão sentir muita saudades. Sumir nunca vai, mas deve acontecer com o carro o que aconteceu com o cavalo, que era um modo de locomoção e hoje as pessoas alugam ou compram para andar por esporte.
As vendas globais já passam de 94 milhões de veículos por ano. O impacto ambiental desse volume aumenta quando pensamos no carro elétrico, em que temos o agravante da bateria como um componente de difícil descarte. Você apostaria no nascimento de um novo ecossistema de reciclagem dos carros?
Espero que consigamos ter um ecossistema que dê uso aos materiais que não terão mais serventia como carro, que consigamos reciclar os materiais e usá-los tanto de maneira economicamente viável quanto ambientalmente viável. Fica essa missão e oportunidade para os empreendedores: prever o descarte e reuso do novo powertrain será bastante relevante.
Que conselho você daria às empresas nesse momento de transformação?
O cenário vai mudar bastante, pode ser um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde, o importante é que não podemos nos dar ao luxo de ficar parados. Temos que nos movimentar e nos posicionar nesse novo futuro. Se esperarmos as coisas acontecerem, será tarde demais. GIOVANNA RIATO E PEDRO DAMIAN, Leia mais em automotivebusiness 06/03/2019
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