Creio que estamos entrando em uma nova era, que, além de ser motorizada pela tecnologia digital, será basicamente de serviços. Em vez de quarta revolução industrial, devemos chamar de primeira revolução de serviços
Toda mudança na sociedade é disparada por eventos marcantes. O século 20, na verdade, começou em 1918, com o fim da Primeira Guerra Mundial e a pandemia da gripe espanhola. O século 21 está começando agora, no pós-Covid, e principalmente mostrará as diferenças com relação à era anterior com o pós pós-Covid, quando depois de uma inédita paralisação do planeta, estaremos retornando aos poucos a uma nova vida, em um cenário ainda incerto, que podemos chamar de novo normal.
Temos poucas certezas. A mais concreta é que o mundo digital foi acelerado de forma abrupta. O século 20 foi o auge da evolução da sociedade industrial, onde os produtos manufaturados foram a base da economia. Tudo girava em torno dos produtos e das principais indústrias. Com a era digital, creio que veremos um novo contexto, onde os serviços passam a ser o principal ativo. A tecnologia está fazendo com que os serviços passem a ser os novos produtos.
Recentemente li um artigo que me provocou esse insight. O artigo, de 2018, “Servitisation: how technology is making service the new product” mostra que estamos vivenciando uma transição de modelo mental, saindo do conceito de propriedade ou posse, para uso ou acesso. Não preciso de uma máquina de lavar ou um automóvel, mas quero roupa lavada ou me deslocar de um lugar a outro. O serviço e a experiência proporcionada por ele é que fará a diferença entre as empresas vencedoras e as que ficarão presas aos modelos de negócio do século passado e tenderão a cair na irrelevância. No limite podemos falar em um modelo de “everything as a service”.
Para isso acontecer são necessárias tecnologias que já existem, mas que devem ser usadas de forma integrada e convergente como IoT, IA, smartphones, RA/RV, impressoras 3D e blockchain. Não são necessárias todas elas em todas as aplicações, mas são elas as peças lego dos novos modelos de negócio que já estão surgindo.
Vamos exemplificar a ideia. No modelo industrial, as fabricantes de automóveis (montadoras) competiam por oferecer os melhores produtos, automóveis que os usuários compravam e usavam por algum tempo. Na prática, um automóvel é um ativo que se desvaloriza rapidamente e, para um usuário típico, é muito pouco usado na sua vida útil.
Imagine que você se desloca de manhã para o escritório e no final do dia, faz o percurso inverso, do escritório para sua casa. No fim de semana o usa para alguns deslocamentos como ir ao shopping ou supermercado. Com a intensificação do “working anywhere”, trabalhando em casa ou no escritório, provavelmente não precisaremos mais nos deslocar diariamente para o escritório. E pela maior aceitação do comércio online, serão necessárias menos idas aos supermercados.
O conceito de “everything as a service” já é comum em TI, com o uso de cloud computing e assinaturas de software. O que veremos é sua disseminação por outros setores de indústria. Na indústria automotiva, por exemplo. A convergência de fatores como a eletrificação, a automação e o “everything as a service” mudarão por completo a cadeia de valor da indústria. Os fabricantes continuarão a fabricar veículos, para aqueles usuários que ainda desejarão ter um, mas poderão produzir para eles mesmo alugarem para seus clientes, por demanda.
O conceito de “everything as a service” já é comum em TI, com o uso de cloud computing e assinaturas de software
Olhando os fatores acima, vemos que isso vai transformar as montadoras, de fabricantes para empresas de serviços de mobilidade, e essa transformação vai provocar uma onda de mudanças em toda a cadeia. Precisaremos ter tantas concessionárias, se menos veículos serão vendidos? Precisaremos de seguros de automóveis como hoje, se o veículo fabricado por uma montadora continua pertencendo a ela? Qual será a diferença entre, por exemplo, uma GM, um Uber e uma Localiza?
E como falamos em máquinas de lavar acima, vamos olhar para elas também. Um fabricante de máquina de lavar pode se transformar em uma empresa de serviços, que fabrica a máquina, mas não a vende para você. Ele a aluga e instala em sua casa. Com sensores, consegue desde fazer manutenção preditiva (evitando que você fique correndo atrás de escasso e caros serviços de consertos) ao refil dos detergentes e sabões em pó que serão usados nas lavagens.
Quando o seu estoque estiver acabando, a máquina envia uma mensagem para um parceiro de negócios, que envia o refil para sua residência. Vemos aí um cenário interessante: o fabricante não precisa de um varejista, pois você não quer mais comprar uma máquina de lavar (ou geladeira, fogão ou qualquer outro aparelho caro), mas sim usar os serviços que o aparelho fornece. O fabricante passa a ser uma empresa de serviços, com o produto físico envolvido por uma camada digital, com sensores e integração com algoritmos de IA. O serviço passa a ser feito por assinatura e com direito às atualizações de software via internet e wi-fi. A mesma máquina de lavar pode incorporar novas funcionalidades com novas versões de software.
O conceito de uso ou acesso em substituição à posse ou propriedade tem muito alinhamento com várias macrotendências que vemos hoje no mundo: preocupação com meio ambiente, regionalismo e conflitos geopolíticos que afetam o trânsito de mercadorias físicas entre países. Também em situações extremas, como a pandemia e as ações de lockdown, os contatos físicos são extremamente limitados, e os online incrementados. Com o conceito de “everything as a service” e a economia do compartilhar como modelo mental, as cadeias de valor digitais não seriam interrompidas.
Alguns anos atrás, a PwC publicou um interessante estudo sobre a “sharing economy”, “Sharing or paring? Growth of the sharing economy”, mostrando como isso afetaria diversos setores da economia como turismo e hotelaria (Airbnb), mobilidade (Uber), entretenimento (Netflix e Spotify), bens de consumo, finanças e até mesmo o mercado de trabalho, com o TaskRabbit nos EUA e similares no Brasil, como o Getninjas. O estudo da PwC apontava que até 2025 esse modelo econômico movimentaria, globalmente, cerca de US$ 335 bilhões.
Creio que estamos entrando em uma nova era, que talvez no futuro além de ser motorizada pela tecnologia digital e IA, será basicamente de serviços. Então, em vez de quarta revolução industrial, devemos chamar de primeira revolução de serviços.
Estamos dando ainda os primeiros passos. Um recente estudo, “Digital-Industrial Revolution: Ready To Run After Very Slow Start, New Survey Shows”, efetuado com empresas americanas mostrou que apenas 11% das empresas tinham cerca de ¾ dos seus processos modernizados com uso de IoT. Não tenho dados sobre a situação brasileira, mas creio que seja pior. O uso de IA também ainda está no jardim de infância e vemos aqui e ali alguns bots sendo premiados como grandes inovações do ano. Quando um bot de relacionamento básico com clientes é inovação do ano, isso sinaliza que ainda estamos engatinhando em IA.
A convergência tecnológica da IoT e IA é uma necessidade de sobrevivência. Entrar para competir na sociedade digital alavancada por serviços demanda muito dados e algoritmos. A sociedade de serviços implica que a competição passa do produto para excelência e experiência nos serviços. E isso nos leva a personalização. A melhor experiência é aquela personalizada e não a de massa, como vemos hoje nas relações típicas de muitas empresas com seus clientes. Assim, personalização passa a ser o mantra do varejista, do banco e até da indústria.
Entrar para competir na sociedade digital alavancada por serviços demanda muito dados e algoritmos
Na indústria, um case exemplar é a Tesla, onde a experiência do carro é personalizada através de software. O mesmo carro pode proporcionar experiências personalizadas e diferentes. Vale a pena ler o artigo “Tesla reveals how it will use camera inside Model 3 to personalize in-car experience” para entender o que Elon Musk diz sobre “dynamic personalization”.
Fica o alerta: a indústria automotiva tradicional usa custosos recalls para atualizar ou corrigir funções que muitas vezes são puro software. A Tesla faz autodiagnóstico e pode até efetuar as atualizações via download pela internet, à noite, quando o carro está estacionado. É instigante o artigo “Tesla vehicles can now diagnose themselves and even pre-order parts for service”. É o pensar digital, a reinvenção digital dos processos, contra a digitalização dos processos.
Isso tudo não lembra a substituição do modelo de aluguel de vídeos da era Blockbuster pela experiência superior de streaming de filmes proporcionado pelo Netflix? A Netflix personaliza a experiência do usuário e você vê os filmes na hora que quiser. Pois é, na era digital e do “everything as a service” o seu benchmark, qualquer que seja o setor que você atua, passa a ser empresas como Netflix.
Lembre-se também que as empresas que vão sobreviver no século 21 terão que pensar de forma digital e criar modelos de negócio que reflitam este pensamento. Os modelos de negócio que deram muito certo no século 20 não garantirão o sucesso no século 21. A competição deixou de ser simétrica e limitada aos atores do próprio setor, para ser assimétrica, com os setores fluídos, sem fronteiras. Não importa o produto ou serviço, a diferença competitiva vai estar no valor percebido da experiência digital e personalizada. A pergunta então é: você está preparado para competir na era digital e do “everything as a service”? Por Cezar Taurion - VP de Inovação da CiaTécnica Consulting, e Partner/Head de Digital Transformation da Kick Corporate Ventures. Leia mais em neofeed 23/10/2020
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