A cláusula MAC (material adverse change) incluída em operações de M&A engloba a situação provocada pela pandemia do novo coronavírus, possibilitando ao comprador não fechar a aquisição de uma determinada companhia no Brasil?
Esse é um questionamento bastante frequente neste momento, principalmente em relação aos casos em que o comprador já assinou um contrato de compra e venda mas sem que a operação tenha sido fechada, em especial por causa do período necessário para cumprimento de condições precedentes. Como se sabe, por meio de uma cláusula MAC é possível dividir os riscos da operação entre as partes, cada uma assumindo os que são compatíveis com sua posição. Normalmente, o comprador assume os riscos exógenos, como oscilações econômicas e políticas. Já o vendedor assume os endógenos, como falhas internas ou performance da companhia alvo.
Para nossa reflexão, trago à discussão três hipóteses. Na primeira, o contrato previa a MAC clause; na segunda, o contrato previa a MAC clause com excludentes; e, na terceira, o contrato era omisso quanto à hipótese de ocorrência de um efeito adverso relevante entre a assinatura e o fechamento do negócio. Vamos refletir sobre cada uma delas.
Cláusula MAC prevista
No primeiro cenário teríamos redações similares à seguinte: “MAC significa um efeito adverso relevante nos negócios, resultado das operações, ativos, passivos da companhia”.
É ônus da parte que alega a ocorrência de um evento apontar seus efeitos, demonstrar que são materiais e duradouros e que o impacto sofrido não pode ser atribuído a nenhum dos riscos assumidos de forma razoável.
Para se ter uma ideia, no caso WPP vs. Tempus Group, julgado 6 de novembro de 2001 na Inglaterra, não se considerou que os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 constituíram uma MAC clause. Segundo o Takeover Panel, a compradora (WPP) precisaria demonstrar de que forma, exatamente, o 11 de setembro inviabilizou a continuidade da companhia alvo (Tempus) e que a queda no faturamento não foi causada por falhas anteriores já conhecidas.
Mas pode ser que um tribunal, arbitral ou judicial, reconheça que houve um material adverse effect caso a companhia desmorone. Foi o que aconteceu no único caso em que a MAC clause foi reconhecida na jurisprudência americana — e o episódio não envolveu terrorismo ou doença: Akorn vs. Fresenius¸ julgado em 1º de outubro de 2018.
Esse caso é central para qualquer análise sobre cláusulas MAC nos contratos de M&A, pois o julgamento de 247 páginas é um verdadeiro manual sobre como redigir e interpretar disposições contratuais. A compradora (Fresenius), uma companhia alemã do ramo farmacêutico, assinou contrato de compra da fabricante de genéricos americana Akorn. O contrato dizia que o risco de “qualquer falha no cumprimento de projeções, previsões, diretrizes, estimativas, marcos, orçamentos ou previsões financeiras ou operacionais internas ou publicadas de receitas, ganhos, fluxo de caixa ou posição de caixa, internos ou públicos” não seria considerado um efeito adverso relevante. Contudo, nos trimestres após a assinatura, o faturamento da companhia alvo despencou e, além disso, a compradora recebeu cartas anônimas que denunciavam várias falhas no sistema de coleta de dados dos testes farmacêuticos. A correção dessas falhas demandaria milhões de dólares e alguns anos. Depois de várias tentativas infrutíferas de resolução amigável da questão, a Fresenius pediu para encerrar o acordo e Akorn demandou judicialmente que ele fosse cumprido.
Vice Chancellor Laster, relator do caso, explicou que a decisão de adquirir uma companhia é feita a longo prazo, de forma que uma mera flutuação no faturamento não é suficiente para justificar a desistência do negócio. É necessário demonstrar que a companhia alvo perdeu seu poder de gerar riqueza em um período comercial razoável, normalmente medido em anos, não em meses. Percebe-se, portanto, que é preciso demonstrar factualmente que a companhia sofreu danos profundos e duradouros além dos esperados para o setor.
Como aplicar esse raciocínio à covid-19? O comprador poderia se eximir de fechar o contrato se demonstrar que os danos sofridos não foram unicamente causados pela pandemia, e que outras companhias do setor sofreram perdas menores. Já o vendedor poderia argumentar que a companhia tomou as medidas necessárias para preservar seu potencial de gerar lucro, mesmo diante dos esforços necessários para conter o alastramento da doença, além de ressaltar que o comprador assumiu o risco.
Vale destacar, porém, que não se sabe qual será a extensão dos danos. No momento atual, eles são, quando muito, estimáveis. Portanto, é necessário se precaver. Aos vendedores, aconselha-se agirem conforme os padrões de diligência e lealdade, para que danos econômicos causados pela doença não lhes sejam atribuídos. Aos compradores, sugere-se que sejam vigilantes e que planejem a continuidade da companhia.
MAC clause com excludente
Na segunda hipótese teríamos redações similares à seguinte: “MAC significa um efeito adverso relevante nos negócios, condição financeira ou resultados das operações da companhia, exceto qualquer efeito resultante (i) deste contrato ou das transações contempladas neste documento; (ii) das mudanças ou condições que afetam o setor em geral; (iii) das mudanças nas condições econômicas, regulatórias ou políticas em geral; (iv) das mudanças na lei ou GAAP”.
Em nossa experiência, cláusulas MAC costumam ser acompanhadas de outra que exclui alguns dos riscos de serem considerados um efeito adverso relevante, os chamados “carve-outs” — eles protegem o contrato de ser rompido por algumas situações específicas mencionadas na cláusula.
Nesse caso, se houver uma cláusula MAC no contrato e uma que exclua o risco de uma pandemia como razão para romper o contrato, esta deve, em princípio, prevalecer.
Ausência de MAC clause
Por fim, como proceder se o contrato não tiver uma cláusula MAC?
Segundo o art. 478 do Código Civil brasileiro, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato.
A onerosidade excessiva a uma parte, com extrema vantagem para a outra, restaria configurada nos casos em que o preço já está estabelecido, mas a companhia certamente não terá as perspectivas que foram almejadas pelo comprador, ficando demasiadamente oneroso para o comprador e com vantagem para o vendedor.
Inversamente, poderia ocorrer que grande parte do preço fosse variável, por meio das cláusulas de earn-out, pelo alcance de determinado lucro em um período subsequente. Nesse caso, o vendedor pode não querer mais prosseguir com o contrato, porque o preço ficou muito aquém do que imaginava, com extrema vantagem para o comprador.
Entretanto, o fato de o contrato não prever uma MAC clause não demonstraria que as partes resolveram afastar qualquer possibilidade de rompimento do contrato entre a assinatura e o fechamento? Será que as partes, ao não preverem qualquer tipo de rompimento do contrato, não afastaram o regime da onerosidade excessiva? Não podemos nos esquecer dos novos artigos do Código Civil — como, por exemplo, o parágrafo único do artigo 421, que estabelece que, nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. Há, ainda, o artigo 421-A que prevê, no seu inciso III, que a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.
Para as companhias que estão agora negociando contratos de M&A, recomenda-se a previsão de uma cláusula MAC com menção expressa à covid-19, como fizeram os representantes da E-Trade quando negociaram a venda da companhia ao Morgan Stanley, assinada em fevereiro deste ano. O acordo aloca o risco da doença para as partes igualmente, de maneira que a covid-19 não poderá ser razão para eventual desistência do comprador. Segundo a cláusula pactuada entre as partes, um efeito adverso relevante não ocorrerá em “qualquer […] epidemia, pandemia ou surto de doença (incluindo a covid-19) dos eventos, circunstâncias, desenvolvimentos, mudanças ou ocorrências que constituam ou tenham probabilidade razoável de resultar em um efeito adverso relevante sobre a condição (financeiro ou não), ativos, passivos, negócios ou resultados das operações.”
As discussões acerca de cláusula MAC são sempre profundas, variando as conclusões conforme as especificidades verificadas nos casos concretos. Ademais, como apresentado neste artigo, a própria redação da cláusula MAC pode levantar diferentes questionamentos em ambas as partes. A única certeza é que a covid-19 passará a ser um tema de muita relevância nos contratos de M&A, principalmente aqueles cujo fechamento ainda não ocorreu e em que as partes tiveram que lidar com essa situação posteriormente à sua assinatura.... Por Daniel Kalansky presidente do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial (Ibrademp) ... Leia mais em capitalaberto 27/03/2020
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