Como São Paulo se transformou em um aglomerado de uma espécie bem rara de empresas
Entre maio e agosto de 2012, Ariel Lambrecht e Renato Freitas viraram madrugadas em um casarão da Avenida Ceci, perto do metrô São Judas, onde — sentados em pufes e abastecidos por esfihas — eles trabalhavam em uma ideia que parecia promissora: um aplicativo para as pessoas pedirem táxi pelo celular. No que diz respeito a dinheiro, os dois ex-colegas da Politécnica da USP decidiram colocar, cada um, 1 000 reais por mês na empreitada.
Desse rateio participava também o empresário Paulo Veras, sócio que trouxe para a aventura sua experiência no mundo dos negócios. A vaquinha durou até o fim daquele ano, quando o time já tinha reunido 200 motoristas na plataforma. “Foi um começo bem baratinho, a gente divulgava a marca com panfletos distribuídos nos faróis”, Ariel relembra. Seis anos mais tarde, em 27 de março passado, a 99 Taxis foi comprada pela chinesa Didi Chuxing, que avaliou a empresa paulistana em mais de 1 bilhão de dólares. Nascia assim um autêntico unicórnio, o apelido dado às raríssimas, quase lendárias, startups cujo valor de mercado ultrapassa essa bolada.
À época da transação, o noticiário econômico chegou a chamar a 99 (o nome atual do aplicativo) de “primeiro” unicórnio brasileiro. Não era. Acontece que algumas marcas mantinham seus números em segredo. Além disso, depois da venda da 99, outras negociações de mesmo porte envolveram startups do país. Tudo somado, o ano termina com pelo menos cinco unicórnios made in Brazil: 99, iFood, Movile (dona, entre outras marcas, do próprio iFood), Nubank e Stone. Desses, apenas o último não é nascido ou criado em São Paulo. “Essas marcas mudaram o panorama da cidade. Agora, mesmo executivos experientes pensam em trabalhar em startups”, conta Ariel, que hoje comanda a Yellow, sistema de bicicletas compartilhadas, ao lado de Renato e Eduardo Musa, ex-presidente da Caloi.
Evento no Cubo, criado em 2015: um dos hubs de inovação
Evento no Cubo, criado em 2015: um dos hubs de inovação (Edu Bandelli/Divulgação)
A maior dessas criaturas — até onde se tem acesso aos dados financeiros — é a Movile, que na verdade surgiu em Campinas, em 1998. A empresa automatizava as mensagens que bancos, companhias aéreas e outros serviços enviavam a celulares. Após se transferir para São Paulo, em 2008, ela passou a comprar outros negócios e se tornou um colosso da tecnologia. “De lá para cá, nossa receita cresceu 300 vezes e saltamos de quarenta para mais de 2 300 funcionários”, conta Fabrício Bloisi, 41 anos, fundador do negócio.
Em 2013, Fabrício percebeu que os celulares iriam revolucionar uma série de atividades cotidianas — e comer seria uma delas. Decidiu, então, investir em um pequeno aplicativo de entrega de comida, que tinha dez funcionários e operava em um prédio comercial de Jundiaí, na Grande São Paulo. Era o iFood. A marca, atualmente, leva 12 milhões de refeições por mês e representa metade do faturamento da Movile.
No dia 13 de novembro, Fabrício aumentou sua participação acionária na startup, dessa vez com um aporte de 500 milhões de dólares (cerca de 1,9 bilhão de reais). Foi o maior investimento privado (ou seja, feito fora das bolsas de valores) em uma empresa brasileira de internet na história. Questionado se isso significa que o iFood também se tornou um unicórnio, Fabrício explica: “Tanto a Movile como o iFood ultrapassaram essa marca em março de 2017, mas naquele momento preferimos não anunciar”.
Cristina Junqueira, da Nubank: início após conversas em um café
Cristina Junqueira, da Nubank: início após conversas em um café (Divulgação/Divulgação)
Meses depois, seria a vez da Nubank. A empresa de cartões de crédito e contas bancárias digitais nasceu em 2013, a partir de conversas no café do Empório Santa Maria, na Avenida Cidade Jardim. À mesa estavam sentados Cristina Junqueira (ex- Itaú), David Vélez (ex-Sequoia, um importante fundo de investimentos em startups) e o americano Edward Wible (especialista em tecnologia da informação). Definida a ideia, o time se mudou para um sobrado na Rua Califórnia, no bairro do Brooklin, Zona Sul de São Paulo. “Somos uma autêntica startup californiana”, brinca Cristina. “A gente trabalhava em banquinhos de plástico e precisava desligar o micro-ondas da tomada para plugar o laptop”, ela conta.
Hoje, a Nubank tem 5 milhões de usuários de cartão de crédito e 2,5 milhões de correntistas. Ao longo dos anos, a empresa recebeu um total de 420 milhões de dólares (1,6 bilhão de reais) em investimentos. A marca atingiu o patamar de unicórnio, nos cálculos de Cristina, entre o fim do ano passado e o início de 2018.
Felipe Barreiros, da Mastertech: 3 200 novos programadores formados neste ano
Felipe Barreiros, da Mastertech: 3 200 novos programadores formados neste ano (Alexandre Battibugli/Veja SP)
Esse mapa poderia incluir também mega-startups nascidas no exterior que, após se instalarem em São Paulo, multiplicaram seu tamanho. É o caso da colombiana Rappi. O aplicativo faz entregas de “qualquer coisa” (normalmente, compras de supermercado ou farmácia) em minutos, além de ter um serviço de conveniências das mais diversas (exemplo real: um pedido de reserva no restaurante Arturito, da chef Paola Carosella, em Pinheiros, para três pessoas e de informação sobre o tempo de espera). Fundada em 2015, a marca chegou à capital paulista em julho de 2017.
No próximo trimestre, a cidade deve se tornar a maior operação da empresa — atualmente é a terceira maior. Em setembro, após um aporte de 200 milhões de dólares (780 milhões de reais), a Rappi virou um novo unicórnio latino- americano. “Como estratégia global, vir para São Paulo era indispensável. Além de poder aquisitivo e mão de obra, a cidade tem uma cultura de early adopters (pessoas que abraçam novas tecnologias), o que nos ajudou a crescer no boca a boca”, conta Ricardo Bechara, 30 anos, diretor de expansão da Rappi no Brasil.
Bem além do aplicativo colombiano, São Paulo se tornou um polo global de atração dessas empresas. Um exemplo notável é o dos franceses. Vieram da França para a cidade três unicórnios: BlaBlaCar, Deezer e Criteo. A esses, somam-se startups fundadas aqui por expatriados do país, agora candidatas a virar uma dessas míticas criaturas tecnológicas, como a Loggi, a Dafiti e a Zarpo. De oitenta startups vindas da França ou fundadas aqui por franceses, 76 estão em São Paulo. “Nossa percepção é que somos a maior comunidade estrangeira desse setor na cidade”, diz Aline Bros, diretora da French Tech, iniciativa que reúne esses empreendedores. “O que apreciamos é a mentalidade paulistana. Você marca encontros ou cafés e as coisas já acontecem no dia seguinte”, ela diz.
Silicon Drinkabout: o evento de confraternização ocorre sempre às sextas-feiras
Silicon Drinkabout: o evento de confraternização ocorre sempre às sextas-feiras (Alexandre Battibugli/Veja SP)
O fenômeno dos unicórnios ainda é incipiente por aqui, é verdade. Pequim, na China, a cidade que mais se destaca no assunto, tem 66 startups desse porte. São Francisco, no coração do Vale do Silício americano, conta com mais de trinta. Mas a novidade consolida uma cena de empreendedorismo digital que tem amadurecido rapidamente em São Paulo. Em 2017, as mais de 2 000 startups da cidade atraíram 61% dos investimentos feitos no Brasil no setor — e o país é, disparado, o principal destino desse capital na América Latina (859 milhões de dólares no ano passado, mais que dez vezes o valor do segundo colocado, o México, com 80 milhões de dólares). “Em São Paulo há todos os elementos para as startups: dinheiro, infraestrutura e mercado consumidor”, diz Michel Porcino, gerente de inovação da SP Negócios, órgão da prefeitura para o empreendedorismo.
Parte disso se deve a gigantes corporativos, da área tecnológica ou não, que enxergaram esse potencial e apostaram na capital paulista. Bancados por eles, vários hubs de inovação pipocaram na cidade nos últimos anos. Os principais são o Cubo (do Itaú e da Redpoint, criado em 2015), o Google for Startups Campus (de 2016, o primeiro espaço do tipo inaugurado pela marca nas Américas), a Estação Hack (do Facebook, surgida em 2017, o primeiro centro de startups da empresa no mundo) e a inovaBra Habitat (aberta em fevereiro pelo Bradesco), além de programas robustos de corporações como Telefônica e Visa. “Afora ajudarem as startups, esses centros de inovação transformam a cidade. Ao redor do Google for Startups (no bairro do Paraíso), por exemplo, surgiu uma série de escritórios e restaurantes, e aqueles que existiam por ali ganharam um ar mais descolado”, conta Danilo Picucci, fundador da ZeroOnze Startups, uma associação das empresas inovadoras paulistanas.
Aline Bros, da French Tech: “líder” da invasão francesa (Alexandre Battibugli/Veja SP)
Nesses espaços acontecem centenas de eventos anuais para juntar essa turma. No câmpus do Google, a média é de quatro encontros diários, sempre gratuitos. No Cubo, que tem sessenta startups residentes, são cerca de seis por dia, que costumam reunir os empreendedores a potenciais investidores. “Antes, as startups tinham dificuldade para entrar nos prédios das grandes empresas e agendar reuniões. Agora, são essas corporações que têm interesse em fazer encontros no nosso espaço”, diz Renata Zanuto, head de ecossistema, responsável pelo relacionamento com startups. “Em qualquer dia útil, acontecem pelo menos dez eventos ligados a startups em São Paulo”, completa Porcino.
Outras tantas reuniões têm como sede os coworkings, escritórios compartilhados que se tornaram berçário de negócios digitais. Atualmente, existem mais de 460 ambientes desse tipo em São Paulo — a maior concentração está no bairro de Pinheiros e no eixo da Avenida Paulista. “Mesmo com essa proliferação, eles mantêm uma boa demanda, porque se especializaram: agora a cidade tem coworkings só para advogados, designers, empresas de e-commerce, e por aí vai”, conta Quitério Melo, sócio minoritário da Plug, um coworking que serviu de primeira casa para marcas como Rappi, Uber, Cabify e Loggi.
Outro aspecto importante daquilo que se pode chamar de infraestrutura paulistana é a oferta de mão de obra especializada. Nesse ponto, São Paulo “tem, mas está em falta”. O Brasil possui um problema crônico no setor (existem 406 000 vagas abertas em tecnologia no país) e a cidade, ainda que parte desse contexto, é onde se encontram mais facilmente esses profissionais. “Eles andam tão disputados que, quando começam a se destacar, logo trocam de empresa ou querem ganhar demais”, diz Felipe Barreiros, fundador, em 2016, da Mastertech, escola que neste ano vai formar 3 200 programadores. Apesar dessa limitação, a capital paulista ainda apresenta um contingente de talentos favorável às startups. “Conseguimos montar rapidamente nosso time aqui”, conta Bechara, da Rappi.
Michel Porcino, da SP Negócios: 2 000 startups na cidade
Michel Porcino, da SP Negócios: 2 000 startups na cidade (Alexandre Battibugli/Veja SP)
O que falta? Bem, quem sabe um bar que reúna essa turma. No mundo das startups paulistanas, o momento da cerveja se dá (de novo…) em um evento, o Silicon Drinkabout. Surgido em Londres, ele acontece em São Paulo em todas as sextas-feiras que não sejam feriado. É, contudo, uma happy hour itinerante e com vagas limitadas — ou seja, não existe um point oficial dos empreendedores (muitos com aquele ar nerd) na cidade. Mas são encontros animados, nos quais a cerveja quase sempre é gratuita e, felizmente, é proibido fazer palestras ou qualquer intervenção mais “séria”. “São ótimos momentos de relacionamento, porque nos eventos ‘sérios’ de networking todo mundo está sempre tentando vender algo para você. Nos Drinkabouts as conversas acontecem com maior naturalidade”, diz Daniel Godoy, fundador da apponte.me, que faz relógios de ponto digitais, e com mais de 200 Drinkabouts no currículo.
Além disso, é preciso garantir uma estrutura de conectividade cada vez melhor. “Quando a Didi comprou nossa empresa”, diz Renato, fundador da 99, “achei engraçado os executivos nem sequer perguntarem sobre a qualidade da internet por aqui. Na China, a velocidade é tão alta que eles nem ligam mais para o problema”, ele conta. Deveriam ligar. Sabemos que não é raro ficar sem sinal em São Paulo, principalmente em áreas periféricas. Não podemos deixar essa questão de lado se quisermos nos tornar, de fato, um celeiro global de unicórnios. “A gente sempre brinca”, conta Danilo, da ZeroOnze, “que não é preciso muita coisa para criar uma startup. Mas uma coisa de que se precisa é internet. Internet e café”, ele resume. Bom, o café, pelo menos, não há de faltar por aqui... Leia mais em veja 03/12/2018
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