O ano de 2017 marcou o aniversário de cinco anos da entrada em vigor do atual arranjo institucional do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Desde 2012, com o início de vigência da Lei 12.529/2011, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e todos os demais atores institucionais envolvidos com a defesa da concorrência no Brasil precisaram, pouco a pouco, desenvolver uma cultura da concorrência no país sob esse novo marco.
Tendo passado mais de meia década da promulgação da Lei de Defesa da Concorrência, o Conselho passa a lidar com uma nova perspectiva, de consolidação da arquitetura institucional e das práticas estabelecidas. Ao mesmo tempo, deve se manter aberto às novas soluções para os desafios que certamente irão surgir.
Assim, o ano foi marcado por grandes mudanças, mas mantendo a higidez e os avanços institucionais desses cinco anos. Tais mudanças se deram, principalmente, no concernente aos ocupantes dos cargos de destaque: a entrada de seu novo presidente, Alexandre Barreto, além do anúncio de três novos membros para o Tribunal: conselheiro Oscar Bandeira Maia e conselheira Polyanna Ferreira Silva Vilanova, além da recente indicação de Paula Azevedo para assumir a vaga de Gilvandro Vasconcelos, conselheiro decano e uma grande liderança jurídica no Tribunal que deixa o Cade agora em dezembro.
Também é de se notar a mudança de comando da Superintendência-Geral (SG) do Cade, com a saída de Eduardo Frade Rodrigues e entrada de Alexandre Cordeiro Macedo. A Procuradoria Geral Especializada junto ao Cade (ProCade) também está sob novo comando, na figura do Procurador Geral Walter Agra.
Enquanto não se definiam os novos ocupantes de alguns cargos, o trabalho do Cade não refreou. Foram julgados casos e debatidos temas de grande relevância para o Direito Concorrencial brasileiro, em todas as suas áreas de atuação.
Consolidação no cenário internacional
O Cade, no ano de 2017, buscou se posicionar em sentido de fortalecer a posição do Brasil no que tange à cooperação internacional em matéria antitruste. O Conselho recebeu a 5ª Conferência Internacional sobre Concorrência dos BRICS, nos quais foram discutidos temas relacionados a todos os grandes tópicos do Direito Concorrencial[1].
Outro acontecimento relevante foi o pedido feito pelo Cade de adesão do Brasil como membro permanente do Comitê de Concorrência da OCDE[2]. Tal pedido, de acordo com a Autarquia, é um movimento que consolida a participação do Conselho nos encontros temáticos do órgão internacional, possibilitando um posicionamento de maior destaque do país nos debates a respeito de políticas globais de defesa da concorrência.
Reprovações de atos de concentração
Em 2017, o Cade reprovou três operações a ele submetidas. Até então, o Conselho havia reprovado duas operações de maior destaque – a compra da Solvay Indupa pela Braskem e a da Condor Pincéis pela Tigre, em 2014 e 2015, respectivamente.
A primeira operação rejeitada no ano foi também a de maior repercussão midiática. No dia 28 de junho, o Conselho reprovou a aquisição da Estácio Participações S/A pela Kroton Educacional S/A[3]. O Conselho, por cinco votos a um, restando vencida a conselheira relatora Cristiane Alkmin, decidiu que não haveria dentre os remédios propostos pelas partes, qualquer medida suficiente para mitigar os efeitos anticoncorrenciais da operação.
A segunda operação rejeitada foi a tentativa de aquisição da Alesat Combustíveis S.A. pela Ipiranga Produtos de Petróleo S/A, no dia 02 de agosto[4]. Por unanimidade, o Conselho acolheu os apontamentos do conselheiro relator João Paulo de Resende, que argumentou que, caso fosse aprovada, a operação eliminaria “a principal distribuidora capaz de abastecer postos interessados em permanecer como bandeira branca ou em uma alternativa negocial de embandeiramento às três grandes distribuidoras de nível nacional”.
A terceira e última operação rejeitada pelo Conselho foi a reprovação da compra do capital social da Mataboi Participações Ltda. e de sua subsidiária integral, a Mataboi Alimentos Ltda., pela JBJ Agropecuária Ltda., no dia 18 de outubro[5]. Nesse caso, o Conselho levou em consideração o fato de a JBJ ser propriedade de José Batista Júnior, parente dos controladores da JBS, a líder do mercado nacional de abate e comercialização in natura. Dessa forma, por mais que não haja relação societária entre as partes, o Cade entendeu que o grau de parentesco entre o administrador da Mataboi e os controladores da JBS, inclusive levando em consideração a indicação recente de José Batista Júnior para assumir a presidência da JBS na ausência de seus controladores, poderia levar a uma atuação conjunta das empresas após a conclusão da operação. No caso, o Tribunal ainda reconheceu que a operação fora consumada antes da notificação frente à autarquia, levando a autoridade a aplicar multa por gun jumping.
Aprovação de casos com remédios
Para além dos atos de concentração reprovados, a atuação do Cade frente a casos complexos também se embasou consideravelmente na aplicação de remédios antitruste como modo de atenuar possíveis efeitos anticoncorrenciais advindos de operações societárias.
Em 16 de agosto, o Tribunal do Conselho condicionou a compra dos negócios de varejo do Banco Citibank S/A pelo Itaú-Unibanco S/A à assinatura de um Acordo em Controle de Concentrações (ACC), cujo objeto continha a imposição ao Itaú de remédios comportamentais, como a adoção de medidas nos setores de Comunicação e Transparência, Compliance, entre outros. Além disso, o Banco não poderá adquirir instituições financeiras e administradoras de consórcios por 30 meses[6].
Outro Ato de Concentração cuja aprovação foi condicionada à aplicação de remédios foi a fusão entre Dow Chemical e DuPont de Nemours, em 17 de maio[7]. Ponto interessante da referida fusão foi o fato de as estruturas societárias envolvidas tratarem integralmente de pessoas jurídicas estrangeiras. Dessa forma, a aplicação dos remédios teve de ser coordenada com outras jurisdições. Além disso, o conselheiro relator Paulo Burnier mencionou o fato de o ACC preservar incentivos que afetem elementos diversos ao fator preço, como a inovação “com compromissos diversos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) nos mercados afetados pela operação”.
O Conselho também teve de decidir a respeito de outro caso de grande repercussão internacional: a compra da Time Warner pela AT&T foi aprovada mediante restrições, na sessão de 18 de outubro[8]. Após discussões sobre a possível aplicabilidade da Lei do SeAC pelo Conselho, tendo em vista a restrição legal imposta por esse diploma normativo à integração vertical entre produtoras e programadoras e prestadoras de serviços de telecomunicação, o ACC obrigou a AT&T a manter a Sky Brasil e as programadoras de canais Time Warner como pessoas jurídicas próprias, incluindo a estrutura de administração e governança de cada uma delas. Além disso, foi acordada a impossibilidade de a Sky Brasil recusar a transmissão, ou impor termos discriminatórios, em relação às provedoras de canais de programação não-afiliadas à AT&T.
Tais questões poderão ser discutidas em bases mais concretas a partir da edição do Cade de um guia de remédios antitruste, documentação em falta dentre os atuais guias editados pela Autarquia. Uma documentação que parametrize o posicionamento do Conselho a respeito desse tema seria de extrema relevância, a fim de possibilitar negociações mais céleres e efetivas entre as partes e o Cade.
Condutas – o combate aos cartéis
No campo do controle de condutas, o Cade manteve a sua postura forte de investigação a cartéis e do incentivo ao seu programa de acordos. Se de um lado o tribunal julgou 8 casos de cartel em 2017, um número relativamente menor se comparado com o ano de 2016, no qual foram julgados 20 cartéis ao todo[9], de outro houve um aumento no número de Termos de Compromisso de Cessação de Conduta (TCCs) assinados, passando de 61 em 2016 para 72 em 2017, o que elevou de 798 para 840 milhões de reais o valor total das contribuições pecuniárias em TCC. Também houve um aumento considerável no número de Acordos de Leniência assinados: de 11 acordos assinados em 2016, foram assinados 21 em 2017[10].
Dentre os casos de maior destaque, encontram-se aqueles derivados das investigações no âmbito da operação “lava jato”. No mês de dezembro de 2017 foram assinados o décimo terceiro e décimo quarto acordos de leniência relacionados aos contextos da operação[11].
Dessa forma, a diminuição de casos julgados pelo tribunal não demonstra uma menor propensão ao combate a esse tipo de arranjo competitivo no âmbito do Conselho, pelo contrário. A autarquia manteve a política que vinha sendo adotada nos últimos anos pelo Cade, o que mostra o fortalecimento e a cristalização das práticas do Conselho.
Condutas unilaterais
Outro ponto de destaque foram as investigações por parte do Cade no âmbito de condutas unilaterais. De relevante, podemos citar a recomendação da Superintendência-Geral de arquivamento do processo administrativo que apura infrações relativas ao uso de meios abusivos por parte de taxistas para excluir e barrar a entrada do aplicativo Uber no mercado de transporte individual remunerado[12].
A SG se posicionou no sentido de que, enquanto não for decidido pela legalidade ou ilegalidade da Uber, a empresa e outros aplicativos devem ser consideradas concorrentes como quaisquer outros, não podendo ser alvo de condutas anticompetitivas. Além disso, a Superintendência não viu indícios suficientes dos ilícitos denunciados.
Cálculo de multa: a questão da vantagem auferida
O Conselho, durante o ano, enfrentou internamente um debate a respeito do modo de cálculo de multa com base nos termos do artigo 37, I da Lei 12.529/2011. Os conselheiros João Paulo Resende e Cristiane Alkmin trouxeram a posição de que é necessário estabelecer um critério de multa mais dissuasório, que leve em consideração a vantagem que a empresa infratora teria obtido durante toda a conduta. Para tanto, o cálculo de multa deveria se basear em outros fatores, diversos do faturamento bruto da empresa no último exercício anterior à instauração do processo administrativo.
Os outros conselheiros sustentaram durante o ano posição diversa. Entre outros argumentos, consideraram que o critério de faturamento, além de ser explicitamente elencado pela lei como baliza, está mais alinhado com a jurisprudência do Conselho. Assim, seria um elemento capaz de trazer maior segurança jurídica aos administrados e possibilitaria um exercício mais adequado do direito de defesa.
Ao que tudo indica, tal questão continuará a ser debatida em 2018 e os contornos da direção a ser tomada pelo Conselho estão para ser definidos. Tal ponto, assim como a questão dos remédios, é algo que deve ser analisada de maneira pormenorizada pelo Cade como um todo, e não apenas na posição individual dos Conselheiros e Conselheiras.
Cumpre salientar a importância da edição de um guia de dosimetria das penas a serem aplicadas pelo Cade, instrumento capaz de traduzir de maneira mais técnica a necessidade em se estabelecer um padrão de aferimento do dano de modo. Tal guia poderia promover segurança jurídica tanto aos administrados, quanto aos próprios Conselheiros e Conselheiras no momento de julgar os casos a eles levados.
Concorrência e tecnologia – A atuação do Cade
O Cade, conforme já exposto em relação às investigações envolvendo a Uber, fortaleceu sua atuação relativa à interface entre concorrência e tecnologia.
Um exemplo foi o posicionamento da SG, por meio da Nota Técnica 34/2017/CGAA4/SGA1/SG/Cade, de que o zero-rating, definido como a possibilidade de provedores de conexão não descontarem dados das franquias de usuários quando estes utilizam determinadas aplicações, não consiste em infração à ordem econômica[13].
Podemos citar também a recente abertura de estudo por parte do Departamento de Estudos Econômicos (DEE)[14] para análise da relação entre o setor hoteleiro e a atuação de plataformas online de acomodações por temporada. Não houve manifestações concretas a respeito de tal estudo, mas a intenção de realizá-lo denota explicitamente uma preocupação da autarquia em observar atentamente os impactos da economia do compartilhamento na economia brasileira.
O Cade em 2018
Diferentemente do que ocorreu em 2017, a expectativa para o próximo ano é que o Conselho se mantenha com a mesma formação em seus órgãos, com todas as autoridades do Tribunal devidamente empossadas, assim como no caso da Superintendência-Geral. O Tribunal do Cade, ao longo do primeiro semestre, deverá tomar a forma que podemos esperar da sua nova composição para os próximos dezoito meses.
Tal aspecto será conjugado com a experiência adquirida pela autarquia nos últimos cinco anos. Esse equilíbrio entre herança institucional e possibilidade de adaptação aos novos desafios será a marca para um ano que sedimentará a atuação de novos integrantes do Cade, e definirá os rumos que a autarquia deve seguir daqui em diante.
Dessa forma, cabe ao Conselho manter a sua atuação técnica e sua higidez institucional, para que possa responder de maneira satisfatória às questões complexas que com certeza serão levadas à sua análise. ... Por Vinicius Marques de Carvalho
Vinicius Marques de Carvalho é sócio do escritório Vinicius Marques de Carvalho Advogados (VMCA), ex-presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e professor do Departamento de Direito Comercial da Universidade de São Paulo (USP)... Leia mais em Revista ConsultorJurídico 31/12/2017
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