A crise econômica, que fez quase 3 milhões de pessoas abandonarem os planos de saúde desde 2014, está criando um terreno fértil para o crescimento das clínicas populares — que já vinha sendo impulsionado pela saturação do sistema público. O fenômeno tem atraído investidores de peso e de segmentos variados, como Roberto Justus (mídia), Rodrigo Galindo (educação), Elie Horn (imobiliário) e Antonio Bindi (entretenimento), que enxergaram no movimento um negócio promissor e lucrativo. Os planos de expansão são ousados, incluindo criação de franquias, como a da Megamed, que pretende abrir 120 unidades franqueadas em dez anos.
Clínicas populares ‘são puxadinhos do sistema de saúde’
Essas clínicas funcionam como ambulatórios e prestam serviços de baixa complexidade, como atendimento por queixas como gripe, diarreia e dores musculares. As consultas variam de R$ 69 a R$ 120 e podem ser pagas em dinheiro ou cartão, com parcelamento em até dez vezes. São agendadas por telefone, WhatsApp e até Facebook. As clínicas costumam oferecer exames clínicos e de imagem. Um exame de glicose pode sair a R$ 4; o hemograma completo a R$ 12. Para um raio X, o paciente desembolsa de R$ 40 a R$ 60. Algumas oferecem procedimentos como tratamento de varizes, atendimento com psicólogos e psiquiatras.
Segundo sócios das clínicas, o ganho se dá pelo volume de consultas e exames, além dos custos reduzidos quando comparados a hospitais particulares. Denys Xavier, diretor executivo da Clínica SIM, de Fortaleza (CE), afirma que o quadro de pessoal é 30% menor que o de uma clínica geral ou hospital de porte equivalente, pois, como não aceitam plano de saúde, não têm equipes para lidar com operadoras. Além disso, os médicos não têm carteira assinada, são prestadores de serviço.
— O SUS é muito bom no atendimento de alta complexidade, como câncer, cirurgias em caso de acidentes etc. Mas tem deficiências no atendimento primário e secundário, o que significa longas filas para os pacientes. Nosso mercado está aqui — diz Xavier.
Remuneração dos médicos
Foi com esse modelo que Xavier, filho de médicos, atraiu investidores anjos (que investem capital próprio em empresas nascentes) para a SIM, entre eles Rodrigo Galindo (presidente da Kroton Educacional) e Joaquim Ribeiro (ex-presidente da Technos). Este ano, o fundo de venture capital Monashe, que investe em negócios como o aplicativo de transporte 99, se uniu aos sócios. A clínica, que começou em 2007 como empresa familiar, tem seis unidades em Fortaleza e abriu uma em Recife, semana passada. Até o fim do ano, serão mais sete. Em 2018, virão outras 16, com investimento de R$ 600 mil cada.
O modelo de remuneração dos médicos varia. Na SIM, eles ganham um percentual da consulta (de 40% a 60%). Em outras clínicas, como na Megamed, os donos pagam um fixo de R$ 1.200 a R$ 1.300 por plantão de seis a oito horas para especialidades cujas consultas custam mais caro, como a psiquiatria. Médicos de especialidades com consultas de preço menor recebem a partir de R$ 300 por dia trabalhado, além de percentual por atendimento.
A média paga por consulta pelas operadoras de saúde era de R$ 57,72, em 2013, segundo os últimos dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regula as operadoras. O valor é considerado baixo pelos médicos, que se queixam de receber em até 90 dias. Nas clínicas populares, o pagamento é mensal ou semanal.
— É a nova fronteira no mercado de trabalho médico. Oferece o que a população pode pagar e, para os médicos, há vantagens como o pagamento sem atraso e sem a glosa dos planos — afirma Lígia Bahia, especialista da UFRJ, complementando que, embora seja uma tendência em países em desenvolvimento, o serviço não colabora para a boa gestão da saúde nem alivia a demanda no SUS.
— As clínicas populares cuidam do sintoma, não da doença. As demandas de maior complexidade continuam concentradas no SUS. E há outros limitadores. É um negócio que demanda escala, que tende a ficar concentrado nas áreas mais adensadas.
Não há dados oficiais sobre o crescimento das clínicas populares. Segundo a Anvisa, elas seguem as normas relativas à infraestrutura e boas práticas em serviços de saúde. Estão sujeitas a normas de estados e municípios, e têm licenciamento e fiscalização sob responsabilidade dos órgãos da vigilância sanitária locais. Precisam de diretor técnico e registro junto aos conselhos de medicina.
Segundo Emmanuel Fortes, diretor de fiscalização do Conselho Federal de Medicina, não podem distribuir panfletos ou oferecer cartões de fidelidade.
O Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj) diz ver o interesse de investidores em clínicas populares “com extrema preocupação”. “O segmento não pode ser visto por empresas como uma forma de gerar grandes lucros”, diz.
Foi a possibilidade de retorno financeiro com um negócio de impacto social que levou o empresário Roberto Justus a investir na Megamed, há dois anos. Com duas filiais em São Paulo, a clínica planeja abrir 30 unidades e 120 franquias em dez anos — já foram vendidas cinco no Rio. Justus tem 30% da empresa, ao lado da família de Ruy Marco Antonio (que controlava o Hospital São Luiz) e outros sócios menores.
— É um mercado em que há carência de serviço de qualidade para pessoas que precisam de atendimento. Uni o útil ao agradável — diz Justus.
Assim como ele, Eli Horn, fundador da Cyrela, e Eduardo Alcalay, presidente do Bank of America Merrill Lynch, decidiram entrar nesse ramo. Os dois estão entre os sócios da Cia. da Consulta e foram atraídos por um jovem administrador de empresas, Victor Fiss, que ainda na faculdade lançou um projeto-piloto de clínica médica para atender a população de baixa renda a preços acessíveis. Há poucos meses, a Cia. da Consulta abriu sua primeira unidade na Praça da Sé, em São Paulo. Como as demais clínicas populares, não trabalha com o SUS nem aceita plano de saúde.
‘Uber da medicina’
No Rio, a Granato é uma das líderes na área. Já levantou R$ 8 milhões com parceiros: o fundo Albatroz, o sócio da Passe VIP, Antonio Bindi, e o publicitário Vita Zocos, da VZA. São sete unidades, incluindo a primeira na Baixada Fluminense, que abre amanhã. Paulo Granato, médico e fundador, quer levantar R$ 50 milhões numa próxima rodada de investimentos. Ele prevê fechar 2017 com 200 mil atendimentos, alta de 60%:
— A crise acelerou o crescimento das clínicas populares, mas o modelo não está amparado na crise. O SUS não tem perspectiva de melhora no médio ou longo prazo. Por outro lado, há médicos e pacientes insatisfeitos com os planos de saúde.
Solange Beatriz Palheiro Mendes, presidente da FenaSaúde, não vê as clínicas populares como concorrente:
— Elas são o Uber da medicina. São uma forma de médicos prestarem serviço com preço menor, usando os horários ociosos para atendimento. O Globo Agência O Globo Leia mais em newsstand 23/10/2017
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