Na última década, comércio com o gigante asiático se tornou mais desfavorável ao Brasil
A presidente Dilma Rousseff recebe o primeiro-ministro da China, Li Keqiang, no Palácio do Planalto, em cerimônia oficial de boas-vindas (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Em seu discurso ao receber o primeiro-ministro chinês, Li Keqiang, em 19 de maio, a presidente Dilma Rousseff citou um provérbio do país asiático: “se o vento soprar em uma única direção, a árvore crescerá inclinada”. A frase resume bem os últimos dez anos de comércio entre as duas nações. Os ventos do real valorizado, do aumento da sofisticação tecnológica da China e da alta mundial nos preços das commodities sopraram, para o Brasil, na direção da exportação de produtos básicos e da importação de bens de valor agregado. A árvore que inclinou, para baixo, foi a da indústria brasileira, que perdeu ramificações e capacidade de competir, mostram dados reunidos por Época NEGÓCIOS e pesquisadores do setor. Alguns desses economistas julgam que o vendaval foi tão intenso que pode ter dizimado chances de recuperação de alguns setores, agora que o setor produtivo vê ares mais favoráveis.
A China é hoje o principal parceiro comercial do Brasil. Em 2014, os negócios entre os dois países atingiram quase US$ 80 bilhões, nove vezes o valor do comércio bilateral há apenas dez anos. A transformação na pauta de exportação e importação ajuda a explicar os últimos anos de inserção comercial do Brasil. Em primeiro lugar, a exportação brasileira para a China – e para o resto do mundo – tornou-se mais primária. Em 2014, 80% dos US$ 41 bilhões que exportamos para o país asiático correspondiam a apenas três produtos: soja, minério de ferro e petróleo bruto. A concentração é muito maior que em 2004, quando os três itens ocupavam 54% da pauta. “Isso nos deixa muito vulneráveis. O minério de ferro, que já chegou a US$ 100 a tonelada, está em cerca de US$ 55. O petróleo caiu de US$ 115 para US$ 60 o barril. São bens listados em bolsa, não há muita margem de negociação”, diz Daiane Santos, economista da Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior (Funcex). Em compensação, produtos que o Brasil exportava aos chineses com mais valor agregado, como ligas de ferro e óleo de soja, reduziram sua participação na pauta comercial em até 90%.
Do outro lado, o da importação, a história é exatamente oposta. O pouco que o Brasil comprava dos chineses de matéria-prima bruta, como o carvão mineral para siderúrgicas, praticamente desapareceu da pauta de importação. Deu lugar, principalmente, a peças e componentes de eletroeletrônicos, de informática e de outras máquinas. “Conforme cresce a importância da China como sócio, isso tende desfavorecer a indústria. Não se pode esquecer que a estrutura de proteção da China é viesada contra produtos de maior valor agregado”, diz Maurício Mesquita Moreira, assessor-chefe do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Durante muito tempo, isso não foi encarado como problema. O ciclo de valorização das commodities da década passada e a alta na exportação desses bens ajudou o Brasil fazer bons saldos na balança comercial com a China e com outros países, o que começa se inverter após a queda no preço das commodities. “Nós da academia sempre insistíamos que os termos de troca são necessariamente cíclicos [os preços das commodities tendem a mudar]. Não se pode dobrar infinitamente a aposta num modelo de inserção internacional desta natureza”, diz o professor David Kupfer, que coordena o grupo de pesquisa em Indústria e Competitividade da UFRJ. A pedido de Época NEGÓCIOS, ele tabulou e analisou o efeito das importações chinesas na indústria brasileira nos últimos 10 anos. “Até olhar esses números, eu mesmo não tinha a dimensão da intensidade desse processo.”
Balança comercial Brasil China (Foto: Agência J++)
O barato que saiu caro
De longe, o que mais chama atenção no aumento de importação da China para Brasil são peças e componentes de aparelhos eletrônicos, de informática e de outras máquinas. O grosso da importação não é de bens finais (que contam com mais barreiras de proteção), mas de componentes intermediários, a serem montados em fábricas brasileiras. Por trás desse fenômeno, analisa Kupfer, há pelo menos duas histórias. A primeira é um investimento agressivo da China na sofisticação da sua produção nos últimos anos, fazendo com que as grandes empresas de produtos tecnológicos de alto valor agregado concentrassem sua produção no país. Ou seja, peças que o Brasil já importava de outros lugares passaram a ser importadas dos chineses.
Essa mudança, porém, não dá conta de explicar todo o fenômeno de alta nas importações. A competitividade chinesa também avançou sobre o mercado de peças antes abastecido pela indústria brasileira. Contou para isso com um aliado fundamental: o câmbio valorizado. “A manutenção de uma taxa de valorizada frente ao dólar por um período dilatado de tempo provocou a substituição de produtos nacionais por importados”, diz Thomaz Zanotto, diretor do Departamento de Relações Internacionais e Comércio Exterior da Fiesp.
O dólar baixo fez fabricantes de produtos finais importarem de tudo, o que levou o Brasil a registrar um recorde histórico no coeficiente que mede o uso de insumos importados dentro da indústria. Ao todo, 22,4% do que foi usado pela indústria em 2014 veio de fora. O número tem crescido em todos os últimos cinco anos e está particularmente alto em alguns setores. Na produção de bens de informática, por exemplo, a indústria passou do uso de 56% de insumos importados no ano de 2010 para 76,8% em 2014. Na indústria automotiva, foi de 22,3% para 33,8%.
Coeficiente da indústria brasileira (Foto: Agência J++)
Essa substituição por peças chinesas afetou em cheio as indústrias brasileiras de componentes. “Canso de ouvir história de gente que quebrou ou quase quebrou. Nós produzíamos um milhão de peças por mês em 2011 e, no ano passado, ficamos em 300 mil. Tivemos de cortar em dois terços a nossa mão-de-obra”, afirma José Luiz M. Doval, diretor-administrativo da Wolwerine/Tekno, fabricante de peças para freios automotivos.
Nos meios acadêmicos, esse processo tem sido chamado de desadensamento do sistema produtivo brasileiro. O termo remete à tendência de perder a indústria de componentes intermediários. O Brasil fica com a produção básica de produtos de pouco valor agregado de um lado e, na outra ponta, a indústria final “está sendo cada vez mais empurrada para as atividades de montagem, pura e simplesmente partir de componentes importados em grande número, e crescentemente, da China”, explica Kupfer.
“Na parte eletroeletrônica, a indústria brasileira praticamente virou uma indústria maquiladora, importamos peças de maior valor agregado e apenas montamos os componentes”, reclama Rui Hotta, diretor-executivo do grupo Refrex, que fabrica peças de ar condicionado, geladeiras e fogões, e diz ter cortado 30% de sua mão de obra. Entretanto, ao contrário do modelo de indústria maquiladora mexicana da década de 70 e 80, quando se importava partes semi-prontas para ganhar dinheiro com a reexportação, no Brasil essa importação é para produzir para o mercado interno. “A situação é claramente pior. No nosso caso, o que temos é uma indústria processadora de importações, sustentada pela combinação de tarifas altas e distorções como a Zona Franca de Manaus”, afirma Mesquita Moreira, do BID.
Manaus, por sinal, é o município brasileiro que mais importa da China. É lá que peças semi-prontas importadas de alto valor agregado viram eletroeletrônicos revendidos no resto do Brasil, aproveitando os benefícios fiscais da Zona Franca. Carlos Abijaodi, diretor de desenvolvimento industrial da CNI, diz que, por um lado, esse processo se insere num contexto de fragmentação da produção global em busca da competitividade e cita países como EUA, Japão e Alemanha, onde há uma grande importação em cidades fabris. “Mas a deterioração da competitividade da indústria brasileira também colaborou com esse aumento de importações de bens finais e intermediários, reduzindo a densidade de algumas indústrias”.
Ficando pra trás?
O cenário favorável à derrocada da competitividade da indústria nacional de bens intermediários mudou em parte nos últimos meses, com a valorização do dólar, que chegou a bater os R$ 3,30 e trouxe algumas lufadas de otimismo em meio ao vendaval de notícias ruins. “Com o câmbio se acomodando em um patamar mais realista, já se pode perceber uma tendência gradual de reversão desse quadro”, afirma Zanotto, da Fiesp. Só que esse período de dificuldades para a indústria pode ter deixado feridas difíceis de fechar.
“Para sobreviver, tive de reduzir meus custos. Além de cortar mão de obra, zerei os investimentos”, diz Rui Hotta, do grupo Refrex. “Só que nesse tempo em que ficamos parados, os chineses investiram em produtividade.” O temor de Hotta é exatamente o mesmo dos acadêmicos: será que a indústria intermediária que sobreviveu a esse grande período de dificuldades terá fôlego, agora que o câmbio virou, para se atualizar e voltar a produzir localmente de forma competitiva? “Mesmo agora que o câmbio está três pra um não conseguimos competir, porque há uma desatualização de tecnologia, de produtividade, em áreas que poderiam ser competitivas”, opina Daiane, da Funcex. Fica a dúvida, diz a economista, de se todos esses anos de baixo investimento em produtividade não inviabilizarão a retomada.
“Quando a bonança das commodities virou, ficou a sensação de que a China havia nos colocado num corner. E o Brasil está num corner, mas nós somos os responsáveis”, diz Kupfer, sobre o fato de não termos aproveitado a época de bons preços das commodities para aumentar a produtividade da indústria. “Não podemos agora interromper o fornecimento desses bens ultra-básicos para a China sob pena de fragilizar a balança comercial mais do que ela já está. Temos de ganhar tempo para tentar reconverter a nossa estrutura produtiva em direção a uma produção com mais tecnologia.”
A questão, para os especialistas, é onde vale a pena incentivar a indústria que sobrou. “Não vejo muito futuro no Brasil para indústrias intensivas em mão de obra e vejo também imensa dificuldade de competir naquelas mais intensivas em conhecimento, em função das debilidades do nosso capital humano”, diz Mesquita Moreira, do BID. “Nossas melhores chances estão nas indústrias intensivas em recursos naturais, como petroquímica e agroindústria, mas para isso também precisamos melhorar o capital humano. Ficou claro que simplesmente proteger e subsidiar setores está longe de resolver qualquer um desses problemas. Pelo contrário, só agrava a obsolescência”, complementa.
David Kupfer tem opinião semelhante, e afirma que é possível recuperar uma parte da densidade da indústria, mas que o esforço tem de ser direcionado a setores mais específicos, como a biotecnologia, a indústria de alimentos processados e a parte de mecânica relacionada à exploração de petróleo, onde ainda contamos com alguma vantagem competitiva.
*Conteúdo produzido pela agência J++ para Época NEGÓCIOS Leia mais em EpocaNegocios 01/06/2015
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