O futuro da maior ferrovia do país, a ALL, foi decidido numa típica assembleia de acionistas brasileira. Um evento protocolar, na sede da empresa em Curitiba e que durou apenas sete minutos, aprovou a incorporação pela Rumo, para fusão dos negócios, com a presença de 75% do capital e o aval de 67%. Assim, desde ontem, ainda que sem a maioria absoluta das ações, a principal malha ferroviária do país está nas mãos do empresário Rubens Ometto, dono da Cosan, que terá maioria no conselho de administração da empresa.
O resultado desta combinação é que a ALL retoma sua capacidade de investimento e expansão. Embora a consumação da fusão dependa do aval do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), já há um plano sendo desenhado, com previsão de investimento de R$ 5 bilhões para ampliação de capacidade de transporte, dentro dos próximos cinco a oito anos. Esse valor pode alcançar R$ 8 bilhões, a depender de uma potencial extensão dos prazos de concessão da ferrovia. Os detalhes exatos ainda não foram fechados.
Sem dar detalhes, Ometto disse ao Valor que a Rumo está concluindo um projeto de expansão ferroviária que vai "mudar o paradigma logístico do agronegócio no país" e que o sucesso da fusão é fruto de um "trabalho árduo".
Atualmente, a capacidade da malha é de 17 milhões toneladas anuais (na chamada bitola larga). Com o fim da duplicação do trecho Campinas-Santos, deve alcançar 35 milhões e, com os novos investimentos, o almejado é chegar a 70 milhões no longo prazo.
À frente dessa nova ALL, permanece Alexandre Santoro, que ocupa o cargo desde junho de 2013.
A combinação dos negócios foi apadrinhada por Beto Sicupira, do trio criador da AmBev (com Marcel Telles e Jorge Paulo Lemann), e um dos fundadores e ex-sócio da GP Investimentos - principal acionista da ALL até 2009, quando vendeu sua fatia à gestora BRZ.
Foi Sicupira quem triangulou a retomada do diálogo entre Ometto e Wilson De Lara, do bloco controlador da ALL. A ideia era que buscassem uma solução negocial para a disputa bilionária em torno de um contrato de transporte de açúcar firmado em 2009. Ricardo Arduini, também controlador da ferrovia, ajudou no restabelecimento das conversas.
A briga começou em outubro do ano passado, logo depois que uma desgastante negociação de 18 meses para que Ometto entrasse no bloco de comando da ALL, comprando ações, terminou frustrada. As conversas não tiveram um final feliz, mas permaneceu nestes três empresários o desejo de uma associação. Mesmo naquela primeira conversa já se vislumbrava a fusão.
Rapidamente a disputa em torno do contrato se tornou belicosa e foi parar na Justiça e instalada uma arbitragem. A briga tinha potencial de destruir valor para ambas as companhias. Em novembro, Pércio de Souza, dono da butique de negócios Estáter, foi contratado pela ALL para buscar uma solução.
Pouco mais de um mês após a contratação da Estáter, ambos os lados se deram conta de que mesmo uma solução pacífica e negociada em torno do contrato poderia prejudicar a avaliação tanto de Rumo como de ALL. Além de ser muito difícil, dada a complexidade do acordo. O caminho seria buscar um consenso para a fusão, a despeito do clima de desconfiança entre os acionistas, por conta da infrutífera negociação anterior.
Nascia, então, o que passou a ser chamado de "Projeto Atlas". O nome - batizado dentro da Estáter - foi inspirado no livro "A Revolta de Atlas", da filósofa e escritora americana de origem russa Ayn Rand, cuja trama se desenrola em torno da companhia de ferrovias Taggart Transcontinental.
Poucos dias antes do Natal, o grupo de acionistas do bloco controlador da ALL - liderado por De Lara e Ricardo Arduini, mas que conta ainda com o BNDES, Previ, Funcef e BRZ - acordava que se buscasse uma fusão com a Rumo.
O desenho principal foi definido próximo às festas de fim de ano, quando todos estavam de férias, numa quantidade sem fim de telefonemas e e-mails transcontinentais. Ometto estava em Nova York (EUA). De Lara, em Angra dos Reis (RJ), e Souza, na Austrália. Marcos Lutz, presidente da Cosan, estava em Miami (EUA), e Santoro, dividiu-se entre Curitiba e uma tentativa de férias no Caribe.
No começo, havia uma disparidade nos desejos de cada um dos lados. Os acionistas da ALL aceitavam que a Rumo representasse 36% da nova empresa combinada, mas ela viria com R$ 1 bilhão em dinheiro novo, que seria aportado por fundos de investimentos.
Já a Cosan e os minoritários da Rumo, a gestora de recursos Gávea e o fundo Texas Pacific Group (TPG), acreditavam que a empresa de logística deveria ficar com 45% a 50% da soma dos negócios.
Entre o começo de janeiro e o dia 24 de fevereiro, quando foi oficialmente lançada a proposta pela Cosan (aprovada ontem na assembleia de ALL), houve de tudo. Caíram fora das conversas o dinheiro novo na Rumo e também uma diligência completa na ALL. Então, os percentuais desejados começaram a se aproximar.
O modelo final ficou estabelecido numa proposta vinculante (da qual não se pode desistir) e porteira fechada (sem ajustes futuros em casos de contingências, mesmo sem a diligência), em que os acionistas da Rumo ficam com 36,5% do negócio e os da ALL, controladores e minoritários, com 63,5%.
Esta foi a forma encontrada para acabar com o ceticismo dos acionistas da ALL de que Ometto poderia sair da mesa - como ocorreu na negociação anterior - e ainda agilizar a aceitação do heterogêneo grupo controlador da companhia de ferrovias. Assim como a execução da assembleia antes do Cade foi a saída usada para se evitar o risco do que houve no caso da fusão das empresas educacionais Kroton e Anhanguera.
A solução para o contrato de 2009 foi o combustível essencial para a fusão. Foi essa parceria, firmada pela gestão anterior da ALL, que terminou por levar a empresa ao seu destino final, debaixo do Grupo Cosan.
A companhia de Ometto terá pouco menos de 27,5% da companhia final, mas nove de 17 membros do conselho de administração. Haverá um novo acordo de acionistas, em que será acompanhada do BNDES (apesar de menos influente, é investidor com maior fatia na ALL), Gávea e TPG. Juntos, somarão 44% da nova ALL.
O valor que o contrato teve dentro da negociação é mantido a sete-chaves pelos envolvidos. Mas o Valor apurou que ele representou, pelo menos, metade da avaliação da Rumo, de R$ 4 bilhões, dentro da transação - ou seja, ao menos R$ 2 bilhões. A ALL foi avaliada em cerca de R$ 7 bilhões.
Em 2009, o contrato parecia bom para ambas as partes. Mas hoje, cinco anos depois, o que se diz - também dos dois lados - é que a parceria era ótima para a Rumo, pois foi o que tornou a companhia viável e a razão principal do aporte de R$ 400 milhões por Gávea e TPG, em 2010. Para a ALL, se tudo tivesse saído como planejado, seria apenas ´bom´.
Na época, contudo, foi a melhor forma que a empresa encontrou de conseguir R$ 1 bilhão para investir em aumento de capacidade - malha, vagões e locomotivas. Essa era a contrapartida da Rumo para o compromisso de a ALL transportar, em volumes crescentes, o que hoje estaria em 9 milhões de toneladas. A realidade é que, por não ter conseguido duplicar todo trecho até o Porto de Santos no prazo previsto, hoje apenas dois milhões de toneladas de açúcar passam pela ferrovia.
O problema é que esse contrato contém, além de uma remuneração atrativa para a Rumo, na forma de uma taxa por tonelada transportada, multas pesadas em caso de descumprimento pela ALL. E essas penalidades começaram a ser cobradas na ponta do lápis após o fim das primeiras negociações entre Ometto e ALL em 2013. Não havia, no contrato, a simples previsão de que a capacidade solicitada pela Rumo só seria atendida após a conclusão das obras necessárias.
Com a fusão, entre ganho de eficiência com a substituição do transporte de açúcar por commodities com fretes maiores e o fim das perdas e gastos com o contrato, a nova ALL terá potencial de gerar dez vezes mais caixa do que a atual - podendo passar para R$ 500 milhões anuais de fluxo de caixa operacional.
Essa nova realidade é o que deve permitir que a companhia possa se financiar buscando novas dívidas, inclusive no BNDES. Ao fim de março, a dívida líquida da ALL estava em R$ 4,6 bilhões, equivalente a 2,3 vezes o lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização (Ebitda) dos últimos 12 meses. Com a incorporação, o indicador deve cair para cerca de 1,6 vez.
No caso de ser necessária uma capitalização, além das condições do negócio estarem mais atrativas para um eventual acesso ao mercado, o fundo canadense Canada Pension Plan (CPP) ainda tem interesse no negócio. A fundação mantém negociação há cerca de dois anos para entrar na Rumo e estaria interessada até na comprar da fatia do Gávea. As conversas foram paralisadas, aguardando a fusão.
Graziella Valenti e Ivo Ribeiro
Fonte: Valor Econômico | Leia mais em udop 09/05/2014
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