Conheça as empresas que souberam aproveitar o fim da inflação e a expansão econômica brasileira
O ano de 1990 jamais sairá da memória do empreendedor paulista Marco Antônio Stefanini. Com apenas três anos de vida, sua empresa, a Stefanini, fundada para dar cursos de informática e prestar serviços, tinha tudo para, enfim, decolar. Em janeiro, ela contava com 31 cursos programados para os quatro meses seguintes. “Seria um salto enorme”, lembra Stefanini. No entanto, em 16 de março daquele ano, o então presidente Fernando Collor de Mello anunciou seu plano para acabar com a inflação com um ippon, o golpe perfeito do judô, que finaliza as competições no tatame.
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Marco Antônio Stefanini, fundador da Stefanini: "Na época da inflação, não conseguíamos
planejar nada; vivíamos sempre focados no dia a dia"
A principal medida do que ficou conhecido como Plano Collor foi o famigerado confisco da poupança, promovido pela ministra da Fazenda Zélia Cardoso de Mello, afetando as finanças de milhões de brasileiros – dos pequenos poupadores a empresários como Stefanini, a quem restou apenas um cliente, que o pagou 120 dias depois. “O Plano Collor praticamente matou meu negócio”, diz ele. Desiludido, ele chegou a preencher formulários de imigração para a Austrália e para o Canadá. Só não embarcou porque os consulados daqueles dois países demoraram mais de um ano para conceder o visto.
Como tinha tempo livre, passou a dar palestras gratuitas, a fim de prospectar clientes. Ia de ônibus, pois seu carro havia sido roubado. Em 1991, os negócios voltaram, ainda que timidamente, e o empresário decidiu ficar no Brasil. Sábia decisão. “Criamos um DNA gerencial para lidar com crises”, afirma Stefanini. O negócio decolou a partir de 1993, quando a introdução das primeiras etapas do Plano Real trouxe estabilidade à economia brasileira. “Antes, não conseguíamos planejar”, diz Stefanini. “Vivíamos sempre focados no dia a dia.” Naquele ano, a consultoria de serviços de tecnologia faturou seu primeiro milhão de dólares.
Em 1994, a receita triplicou. Atualmente, ele comanda um grupo que fatura mais de R$ 2 bilhões por ano e atua em 30 países. Desde 2010, a Stefanini fez mais de dez aquisições no País e fora daqui, o que faz dela, segundo a Fundação Dom Cabral, de Belo Horizonte, a terceira companhia mais internacionalizada do Brasil. Perde apenas para o frigorífico JBS e para a siderúrgica Gerdau. A Stefanini é um exemplo das companhias que resistiram às turbulências de uma economia que registrou inconcebíveis (para quem vive no Brasil de hoje) 2.476% de inflação em 1993, e souberam aproveitar as oportunidades da estabilização econômica.
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Rômulo Dias, presidente da Cielo: "Antes do Real, o mercado de cartões era um negócio
com o qual ninguém ganhava dinheiro"
Nesse sentido, melhor sorte tiveram empresas como a Cielo, de transações eletrônicas, a vendedora de planos de saúde Qualicorp, a rede de ensino Anhanguera Educacional, a companhia de tevê a cabo NET e a cervejaria Petrópolis, que já nasceram em um país diferente, numa época de inflação controlada. E souberam tirar partido desse período, que pode ser dividido em três fases. Na primeira, com o controle da inflação, as companhias puderam, enfim, fazer um planejamento de longo prazo, a despeito das crises da época, como a mexicana, a asiática e a russa, entre 1994 e 1998, e a queda das Torres Gêmeas, em 2001.
A partir de 2004, o crescimento da renda e o aumento do crédito trouxeram novos consumidores ao mercado. E, em 2008, quando a crise financeira global derrubou mercados ao redor do mundo e enfraqueceu os Estados Unidos e a Europa, as empresas brasileiras, fortalecidas na ocasião, saíram à compra de ativos baratos no Exterior, reforçando seu processo de globalização. A área de cartões de crédito é emblemática das mudanças pela qual passou o Brasil com o fim da hiperinflação. “Antes do Real, esse mercado era um negócio com o qual ninguém ganhava dinheiro e também não havia escala”, diz Rômulo Dias, presidente da Cielo, a maior companhia brasileira de transações eletrônicas, controlada pelo Bradesco e pelo Banco do Brasil.
É fácil de entender o que Dias quer dizer, principalmente para quem viveu a época da hiperinflação. Primeiro, havia poucos lojistas que aceitavam cartões. Entre aqueles que o faziam, a prática era cobrar mais caro de quem pagava as mercadorias e os serviços com o plástico. Conclusão: os brasileiros preferiam o cheque e o dinheiro. “As transações com cartão de crédito eram quase nulas na época”, afirma Dias. A estabilização econômica foi a parteira do mercado brasileiro de cartões. A Cielo, fundada em 1995 com o nome de Companhia Brasileira de Meios de Pagamentos (CBMP), começou a operar uma rede credenciada de mais de 100 mil estabelecimentos.
Em 1996, passou a se chamar Visanet. Desde então, cresceu de forma acelerada. Sua receita aumentou 250% desde 2006. O lucro líquido expandiu-se 3,5 vezes no mesmo período. Com valor de mercado de mais de R$ 51 bilhões, a Cielo, que detém uma participação de mercado de 53%, é a nona empresa mais valiosa do Brasil. Essa valorização deve-se à explosão de seu segmento de atuação. Neste ano, o valor de transações por cartão de crédito e débito deve somar R$ 844 bilhões, um aumento de 17%. Em 2015, a estimativa da Abecs, associação que representa o setor, é chegar a R$ 1 trilhão. E ainda há muito espaço para crescer.
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No Brasil, o gasto com cartão de crédito dividido pelo consumo nacional está na casa dos 26%. Nos Estados Unidos, 50%. Além disso, as transações ainda estão concentradas nos consumidores do Sul e Sudeste. “Em dez anos, podemos chegar a 45%”, estima Dias. A expansão dos cartões reflete o aumento do poder de compra dos brasileiros, que também beneficiou o setor de bebidas. “O baixo desemprego e a renda em alta favoreceram sua expansão”, diz Pedro Galdi, analista da corretora SLW. Entre 1994 e 2012, o País passou da quinta para a terceira posição entre os maiores produtores de cerveja, indo de 6 bilhões para 13 bilhões de litros, segundo a alemã Barth-Haas, cujos relatórios são referência no setor.
O Grupo Petrópolis é um exemplo de como a nova conjuntura favoreceu as cervejarias. Criada em 1994, a empresa desbancou a Schincariol da vice-liderança do setor, em outubro de 2011. Hoje, a Petrópolis possui uma fatia estimada de 11,3% desse mercado e faturou cerca de R$ 10 bilhões em 2013. Nos últimos anos, além de satisfazer suas necessidades de consumo, a nova classe média passou a investir cada vez mais em educação e a preocupar-se com a saúde. “Essas famílias querem, pelo menos, um membro com diploma superior”, diz Carlos Monteiro, presidente da CM Consultoria.
Esse mercado, porém, só deslanchou após mudanças na legislação, entre 1995 e 1998, permitirem a criação de instituições de ensino universitário com fins lucrativos. O resultado foi um salto de 176% no setor privado, que passou de 764 instituições em 1998, para 2.112 no ano passado. Como comparação, as instituições públicas avançaram 36%, para 284. A Anhanguera Educacional, fundada em 1994, floresceu nesses 20 anos. Hoje, em processo de fusão com a Kroton, para criar o maior grupo de ensino do mundo em valor de mercado, a Anhanguera mostra que soube aproveitar esse impulso propiciado pela mudança nas regras do setor e pelo aumento do poder aquisitivo da população brasileira, principalmente das classe C e D.
“A demanda reprimida dos jovens trabalhadores sempre foi grande”, diz Antonio Carbonari Netto, um dos fundadores do grupo e membro do conselho de administração. “Pensávamos em prepará-los para o mercado de trabalho.” Mas Carbonari é apenas um de muitos exemplos de empresários que encontraram um novo mundo de consumidores. Na área de saúde, José Seripieri Filho, fundador da Qualicorp, foi um dos que mais se beneficiaram da evolução das últimas duas décadas. Colocado na 107a posição do ranking da Forbes de 2013 dos brasileiros mais ricos, com uma fortuna de R$ 1,14 bilhão, ele era um simples vendedor de planos de saúde da Golden Cross, até meados da década de 1990.
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Antonio Carbonari Netto, da Anhanguera Educacional: "O Real permitiu
à classe média emergente preparar seus jovens para o mercado"
Foi nessa função, ainda na Golden Cross, que Seripieri Filho teve a ideia de criar um novo mercado para o setor de saúde no Brasil: o dos planos coletivos por adesão. Em 1997, fundou a Qualicorp, fazendo a intermediação entre as operadoras e os grandes clientes, como associações de classe. Nesse modelo, a Qualicorp aproveitou a expansão do mercado de planos de saúde, que cresceu 50% na década de 2000. Com isso, atraiu alguns dos mais conhecidos fundos de investimentos internacionais. Em 2008, vendeu uma fatia de 46% de seu capital para o americano General Atlantic por US$ 156 milhões.
Dois anos depois, foi a vez de outro gigante americano, o Carlyle, pagar US$ 1,1 bilhão pelo controle da empresa. Ao sair do negócio, em 2012, o fundo americano embolsou o dobro desse valor. Atualmente, os brasileiros do 3G, de Jorge Paulo Lemann, são os sócios de Seripieri. Nessas duas décadas, que fizeram florescer setores como o de cartões de crédito, saúde e educação, poucos segmentos evoluíram tanto quanto o de tevê por assinatura. Na primeira metade dos anos 1990, a tevê paga era um artigo de luxo, disponível para poucos em alguns lugares do País, e sua clientela, na maior parte das vezes, estava confinada nas regiões nobres das maiores cidades do País.
Para complicar, a quase totalidade da programação era transmitida exclusivamente em inglês. A popularização da tecnologia foi atrasada pelos altos preços dos pacotes cobrados pelas operadoras e por deficiências na infraestrutura, mas as operadoras de tevê paga já atingem 17,8 milhões de lares brasileiros. A maior beneficiada é a NET, dona de 33,7% desse mercado. Essa fatia aumenta para 53,6%, se for contabilizada a participação da Embratel, empresa da América Móvil, do bilionário mexicano Carlos Slim. Um resultado e tanto para uma empresa que tem origem em uma pequena operadora de Mato Grosso do Sul, que ao fim de 1993 tinha menos de cinco mil clientes.
O grande avanço da NET ocorreu só em 2005, após Slim propor a integração da tevê paga com banda larga e telefonia fixa, lançando o conceito triple play. “Isso era um sucesso nos Estados Unidos, mas aqui ninguém explorava”, diz Eduardo Tude, da consultoria paulista Teleco. “A NET, então, deixou de ser uma empresa pura de tevê por assinatura.” A recompensa foi tornar-se a maior provedora de banda larga do Brasil, superando a Oi, no terceiro trimestre de 2013. É um feito e tanto para uma empresa que, tal como a Stefanini, pode exibir uma história de crescimento propiciada por um ambiente mais amigável para os negócios trazido pela estabilização.
Por Ralphe MANZONI JR., Márcio JULIBONI e Carlos Eduardo VALIM
Fonte: istoedinheiro 27/12/2013
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