A adaptação das normas contábeis brasileiras para os padrões internacionais (IFRS, na sigla em inglês) mudou a forma como são classificados os investimentos dos fundos de private equity - que compram participações em empresas.
De sócios, os gestores passaram a ser vistos, pelo menos do ponto de vista contábil, como credores das companhias nas quais investem.
A nova interpretação colocou em lados opostos as auditorias e os fundos. O fruto da discórdia é o CPC 39, do Comitê de Pronunciamentos Contábeis, que trata da forma como as companhias devem classificar os instrumentos financeiros.
Pela regra, uma adaptação da norma internacional IAS 32, as ações preferenciais resgatáveis, um dos instrumentos mais usados pelos fundos - principalmente de gestoras locais -, passaram a ser avaliadas como dívida no balanço, e não capital. O papel concede ao investidor uma espécie de opção de venda para a companhia em uma data futura, caso algumas condições não sejam atendidas, como uma abertura de capital. Até a mudança na regra, o aporte feito por meio de papéis resgatáveis engordava o patrimônio das empresas, com o aval dos auditores.
A norma, que já valeu para os balanços de 2010, colocou várias empresas em situação delicada. Tanto que a opção de muitas delas foi manter as ações no capital, ao custo de uma ressalva ou até mesmo um parecer adverso da auditoria no balanço, enquanto buscam uma forma de contornar a situação com os fundos.
As ações resgatáveis são usadas como um mecanismo adicional para garantir liquidez ao private equity caso não haja uma venda da participação a um sócio estratégico ou a abertura de capital da companhia após um prazo determinado. Um estudo do Centro de Estudos em Private Equity e Venture Capital da Fundação Getúlio Vargas aponta que 31% dos aportes realizados pelos fundos ocorreu com o uso de ações preferenciais. Desse total, 79% são resgatáveis.
Embora o investimento dos fundos tenha um caráter de sociedade, na essência, o resgate dos papéis impõe uma obrigação para a empresa semelhante a qualquer outra dívida, na avaliação de Tadeu Cendón, sócio da PwC. "Ninguém duvida que a intenção dos fundos seja participar do crescimento das empresas, mas a norma apenas trouxe à tona uma realidade que não ficava tão evidente antes."
Cendón reconhece que a mudança contábil é "perversa" para muitas companhias. "Como os aportes feitos pelos fundos em geral envolvem valores relevantes, a reclassificação pode destruir a posição patrimonial", afirma. Além do súbito aumento da alavancagem, que compromete os indicadores estabelecidos em financiamentos, existem casos de empresas que, após os ajustes, se viram com patrimônio negativo.
Dependendo do período restante para o resgate das ações, o investimento do fundo pode sair direto da conta de capital para o passivo circulante - que indica compromissos de curto prazo a honrar. "Provavelmente vamos perder clientes, mas não podemos emitir um parecer que consideramos errado", diz Cendón.
A interpretação dada ao CPC 39 é controversa. Nem todos os casos de investimento em ações resgatáveis devem ser considerados como dívida, defende o professor Eliseu Martins, ex-diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e considerado um dos maiores especialistas em normas contábeis do país.
Para Martins, a interpretação depende de uma análise das condições estipuladas para o resgate. No caso clássico dos fundos de private equity, o aporte costuma ser atrelado à constituição de um fundo de reserva, formado com a retenção de parte dos lucros, para o futuro pagamento do resgate. "Se não houver uma obrigatoriedade de a companhia efetuar o resgate sem que haja lucro no período, não faz sentido classificar a ação como dívida", considera.
A Associação Brasileira de Private Equity & Venture Capital entende que apenas a parcela correspondente ao fundo de reserva representa um passivo para a empresa. "É sobre esse valor que o fundo receberá o resgate, e não sobre o capital investido", diz Clovis Meurer, vice-presidente da entidade.
No entendimento dos auditores, contudo, a vinculação do resgate à disponibilidade de recursos no fundo de reserva não é suficiente para considerar os papéis como capital. Segundo Marco André Almeida, sócio da KPMG, é preciso que as condições para o resgate sejam de controle da empresa, e não do detentor das ações.
Como exemplo, ele cita uma ação que pode ser resgatável caso a empresa venda uma unidade. "Quando a condição está ligada a uma decisão da companhia, o papel pode ser considerado como capital", diz. Já as ações que vinculam o resgate a situações que fogem do controle do emissor, como uma abertura de capital, não podem ser incluídos no patrimônio da empresa, segundo Almeida.
O sócio da KPMG ressalta que a posição das auditorias é amparada na experiência internacional, onde a norma é aplicada para companhias abertas desde 2005. "Embora tenha sido novidade no Brasil, onde muitas empresas foram pegas de surpresa, essa já é uma prática consolidada", argumenta.
De acordo com os auditores, além de retirar a condição de resgate das ações, outra alternativa para escapar das ressalvas é transferir o ônus do resgate das ações ao controlador da companhia. Essa tem sido a opção mais adotada pelos gestores, embora esteja longe de ser a ideal, segundo Daniel Kalansky, sócio da área de private equity do escritório Motta, Fernandes Rocha Advogados. O advogado critica a postura das auditorias, que segundo ele fizeram apenas uma "tradução literal" da norma internacional, sem atentar para a realidade brasileira.
O vice-presidente da Abvcap, que também é sócio-diretor da CRP Companhia de Participações, uma das gestoras mais tradicionais do mercado brasileiro, afirma que decidiu manter no patrimônio das empresas investidas as participações em ações resgatáveis, apesar da ressalva do auditor. Por Vinícius Pinheiro
Fonte:Valor19/10/2011
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